São Paulo, Brasil – Não era incomum que pacientes chegassem de mau humor ao pronto-socorro de um hospital em São Paulo, Brasil, onde o médico Batull Sleiman trabalhava.
Afinal, cada dia trazia novas crises médicas, novos pedidos de atendimento urgente. Sleiman tinha visto tudo. Mas ela não esperava o nível de raiva que recebeu há algumas semanas.
Um paciente chegou à sala de exame frustrado com o tempo que passou esperando atendimento médico. Sleiman lembrou que a sua questão “não era urgente”. Ainda assim, enquanto ela o tratava, ele a acusou de ser indelicada.
“Você está sendo rude comigo porque não é do Brasil”, Sleiman lembra-se dele ter dito. “Se você estivesse em seu país…”
Sleiman disse que ela se virou em vez de ouvir o resto. Filha de imigrantes libaneses, ela acredita que o homem reagiu daquela forma por causa de uma coisa: o hijab dela.
“Fiquei surpreso e indignado”, disse Sleiman à Al Jazeera. Mas, acrescentou ela, a atmosfera no Brasil ficou mais tensa desde o início da guerra em Gaza. “Tenho notado que as pessoas estão me olhando mais na rua desde outubro.”
Mas Sleiman não está sozinho ao sentir-se isolado. À medida que a guerra em Gaza avança, o Brasil é um dos muitos países que enfrentam receios crescentes sobre a discriminação religiosa, especialmente em relação à sua comunidade muçulmana.
Uma pesquisa divulgada no mês passado pelo Grupo de Antropologia sobre Contextos Islâmicos e Árabes – uma organização sediada na Universidade de São Paulo – descobriu que relatos de assédio entre muçulmanos brasileiros têm sido generalizados desde o início da guerra.
Estima-se que 70 por cento dos entrevistados disseram conhecer alguém que sofria de intolerância religiosa desde 7 de outubro, quando o grupo palestino Hamas lançou um ataque ao sul de Israel, matando 1.140 pessoas.
Desde então, Israel liderou uma ofensiva militar contra Gaza, um enclave palestino, matando mais de 21 mil pessoas. Essa resposta levantou preocupações em matéria de direitos humanos, com especialistas das Nações Unidas alertando para um “grave risco de genocídio”.
Embora os palestinos sejam um grupo étnico – e não religioso – a professora Francirosy Barbosa, da Universidade de São Paulo, concluiu que os acontecimentos de 7 de outubro resultaram em incidentes de intolerância religiosa no Brasil, uma vez que a identidade palestina foi confundida com a identidade muçulmana.
Ela liderou a pesquisa de novembro com 310 muçulmanos brasileiros. Os inquiridos, explicou ela, relataram ter recebido insultos que reflectiam as tensões na guerra de Gaza.
“Muitas mulheres muçulmanas nos disseram que agora são chamadas de coisas como ‘filha do Hamas’ ou ‘terrorista do Hamas’”, disse ela à Al Jazeera.
A pesquisa, realizada online, também descobriu que muitos dos entrevistados também tiveram experiência em primeira mão com intolerância religiosa.
“Cerca de 60 por cento dos entrevistados afirmaram ter sofrido algum tipo de ofensa, seja nas redes sociais ou no dia a dia no trabalho, em casa ou em espaços públicos”, disse Barbosa.
As mulheres, em particular, observou o estudo, relataram taxas ligeiramente mais elevadas de intolerância religiosa.
A questão da islamofobia ganhou destaque nacional este mês, quando um vídeo divulgado nas redes sociais parecia mostrar uma moradora de Mogi das Cruzes, um subúrbio de São Paulo, correndo em direção a uma mulher muçulmana e agarrando seu lenço na cabeça. O vídeo chegou a ser veiculado em veículos de notícias como a CNN Brasil.
Uma das mulheres envolvidas, Karen Gimenez Oubidi, conhecida por Khadija, casou-se com um marroquino e converteu-se ao Islão há oito anos. Ela disse à Al Jazeera que a briga envolveu um de seus vizinhos: ela ficou chateada depois que os filhos discutiram.
“Ela desceu com o irmão e foi muito agressiva. Ela me chamou de ‘vadia enrolada em pano’. Logo percebi que não se tratava apenas da briga das crianças”, disse Gimenez Oubidi.
Os vizinhos tentaram separar as duas mulheres. Um homem no vídeo, no entanto, agarrou Gimenez Oubidi por trás, passando um braço em volta de sua garganta para segurá-la. Gimenez Oubidi o identificou para a Al Jazeera como irmão de seu vizinho.
“Ele me disse algumas vezes: ‘O que você está fazendo agora, terrorista?’ Ele não disse isso em voz alta: era só para eu ouvir. Ele sabia o que estava fazendo”, disse Gimenez Oubidi. Ela acrescentou que a briga que seu filho teve com o filho do vizinho também foi por causa do hijab.
A mulher que atacou Oubidi, Fernanda – ela disse que não queria que seu nome completo fosse revelado por medo de reação pública – contestou esse relato.
Fernanda disse que seu filho foi agredido pelo filho de Oubidi no parquinho e, embora ela tenha agredido Fernanda fisicamente, ela não fez referência à sua religião. “Eu nunca a insultei por sua religião. Isso simplesmente não aconteceu. Eu nunca faria algo assim”, disse ela.
Um relatório governamental de Julho observou que a intolerância religiosa “ocorre mais intensamente contra aqueles de origem africana, mas também afecta indivíduos indígenas, ciganos, imigrantes e convertidos, incluindo muçulmanos e judeus, bem como pessoas ateus, agnósticas e não religiosas”.
O Brasil é predominantemente cristão, lar de cerca de 123 milhões de católicos – mais do que qualquer outro país do mundo.
Mas tem uma população muçulmana de longa data, embora menor. Os académicos acreditam que o Islão chegou ao país com o comércio transatlântico de escravos, à medida que os muçulmanos africanos raptados continuaram a praticar a sua religião no seu novo ambiente.
Um grupo de brasileiros muçulmanos escravizados até lançou uma rebelião contra o governo em 1835, chamada de revolta do Malê – um termo derivado da palavra iorubá para muçulmano.
A população muçulmana do Brasil cresceu com ondas de imigração no final dos séculos 19 e 20, especialmente após o colapso do Império Otomano. Os imigrantes árabes, principalmente do Líbano, da Síria e da Palestina, passaram a conhecer o Brasil como seu lar.
O número exato de muçulmanos no Brasil hoje é desconhecido. O censo de 2010 contou 35.167 pessoas identificadas como muçulmanas, mas nos anos seguintes surgiram outras estimativas, que apontam para uma população de 1,5 milhões.
Alguns defensores, no entanto, apontam para outras tendências demográficas e políticas como preparando o terreno para o aumento das tensões entre grupos muçulmanos e não-muçulmanos.
Os cristãos evangélicos constituem hoje o segmento religioso que mais cresce no Brasil, compreendendo cerca de um terço da população. O seu número transformou-os numa força política significativa.
Os eleitores evangélicos foram creditados por terem ajudado a eleger o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro em 2016, com pesquisas mostrando que 70 por cento o apoiavam.
Durante a sua tentativa fracassada de reeleição em 2022, Bolsonaro invocou repetidamente imagens cristãs nos seus apelos aos eleitores, enquadrando a corrida como uma “luta do bem contra o mal”.
Mahmoud Ibrahim, que dirige uma mesquita em Porto Alegre, acredita que a mentalidade de nós contra eles se traduziu em antagonismo contra a sua comunidade.
Nos recentes protestos contra a guerra em Gaza, ele disse que os espectadores o chamavam de “terrorista” e “estuprador de crianças”.
“Evangélicos e bolsonaristas nos insultam o tempo todo. Eles até perseguiram uma pessoa que estava indo para a nossa manifestação outro dia”, disse.
Ibrahim acrescentou que ouviu falar de pelo menos uma mulher que ficou sangrando depois que os agressores tentaram arrancar seu hijab, fazendo com que os alfinetes do lenço cravassem em sua pele.
Girad Sammour dirige a Associação Nacional de Juristas Muçulmanos (ANAJI), um grupo que oferece apoio jurídico em casos de islamofobia. Ele disse que o número de relatórios à ANAJI sempre foi alto, mas desde o início da guerra, em 7 de outubro, explodiu.
“Houve um aumento de 1.000 por cento nas denúncias que recebemos”, disse ele à Al Jazeera, creditando algumas a comentários inflamados de pastores evangélicos de extrema direita.
Mas Barbosa, o líder da pesquisa, acredita que há maneiras de diminuir o ódio e a suspeita dirigidos aos muçulmanos brasileiros. Ela apontou a falta de representação na mídia como exemplo.
“Poucos líderes palestinos e especialistas no Oriente Médio com visão pró-Palestina foram convidados por programas de TV, por exemplo, para comentar o conflito em Gaza”, disse Barbosa.
Mas ela também encorajou os muçulmanos brasileiros a falarem sobre suas experiências, a fim de aumentar a conscientização.
“O que não é denunciado não existe para o governo”, disse ela. “Só se as autoridades souberem o que está a acontecer é que poderão tomar medidas adequadas, como investir na educação contra a intolerância religiosa.”
Fonte: www.aljazeera.com