O som do canto e das maracás ecoa de todos os lados do acampamento enquanto grupos de mulheres de todos os cantos do Brasil se aproximam da tenda principal, onde se reunirão para a Terceira Marcha das Mulheres Indígenas. São 8 horas da manhã e o sol já extremamente quente de Brasília, capital do país, realça as cores de inúmeros trajes tradicionais diferentes.
A marcha faz parte de um evento de três dias marcado por comemorações e denúncias. Mais de 5.000 mulheres indígenas de todos os 26 estados do Brasil marcharam 4 km (2,5 milhas) em direção ao Congresso Nacional para exigir direitos territoriais e o fim da violência de gênero.
O tema norteador deste ano, “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade Através das Raízes Ancestrais”, enfatizou a presença de mulheres indígenas nos seis biomas do Brasil, que incluem florestas tropicais, savanas e semidesertos. Também destacou o papel crucial que estas mulheres desempenham na preservação de todos eles. Para as mulheres indígenas não há separação entre seus territórios e seus próprios corpos. A sua dependência da terra para a sobrevivência física e cultural faz deles os guardiões da natureza que os rodeia.
“As mulheres indígenas foram o primeiro alvo de ataque desde a invasão do Brasil. Nossos corpos, assim como a Mãe Terra, foram vistos pelo invasor português como objeto a ser subjugado, caçado, violado”, afirma Ávelin Kambiwá, do povo Kambiwá, especialista em políticas públicas de gênero e raça. “Com o movimento de mulheres indígenas, damos o salto do corpo-objeto para o corpo-território e nos colocamos na linha de frente da luta pela defesa dos nossos direitos.”
O impulso e a atração do progresso
Este ano, a marcha ocorreu no contexto político mais contraditório que os povos indígenas já viram em décadas.
Por um lado, foi marcado por conquistas relevantes. O atual Congresso tem a maior presença indígena da história do Brasil; o primeiro Ministério dos Povos Indígenas foi criado em janeiro; e a demarcação de territórios indígenas, extinta pelo governo anterior, foi retomada em abril com oito novas demarcações até o momento.
Para os povos indígenas, o seu território é mais do que apenas um pedaço de terra. Faz parte da sua cultura e história e é fundamental para a sua sobrevivência. Uma vez demarcada a área que ocupam, ela fica legalmente protegida de invasões e da exploração abusiva de estranhos. Em suma, a demarcação de terras é o primeiro passo para garantir todos os outros direitos físicos e culturais dos povos indígenas.
Por outro lado, mesmo em governos democráticos progressistas, é difícil tirar das sombras as questões relativas aos grupos minoritários.
“Organizar a marcha deste ano foi um desafio, especialmente em termos de encontrar patrocinadores que nos apoiassem, financeiramente e de outra forma, para que pudéssemos receber adequadamente os milhares de mulheres vindas dos extremos do país”, diz Cristiane Pankararu, do povo Pankararu, membro da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras de Ancestralidade.
Ela lembra como, nos anos anteriores, sob um governo abertamente antiindígena, era mais fácil engajar parceiros. “Este ano, porém, como temos um presidente de esquerda, muitas pessoas presumem que está tudo bem e que todos os problemas irão desaparecer”, diz ela.
Mas esse não é o caso. Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja de esquerda, a maioria do Congresso é ocupada por políticos de direita e de extrema direita, que têm unido forças para bloquear avanços sociais e ambientais. Seu principal esforço tomou a forma do chamado Marco Temporal, que propõe apenas o reconhecimento das terras indígenas ocupadas na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.
A proposta do Marco Temporal avança atualmente em duas frentes: o Supremo Tribunal Federal julga se essa tese é constitucional ou não, enquanto o Congresso vota um projeto de lei para implementá-la como lei nacional. Se for aprovado definitivamente, o projeto de lei não só criará novos obstáculos à demarcação de terras indígenas, mas também revisitará os direitos das terras indígenas que já foram demarcadas e homologadas pelo governo federal, reacendendo antigos (e acendendo novos) conflitos violentos com agricultores e grileiros.
A Terceira Marcha das Mulheres Indígenas ocorreu entre duas sessões do Supremo Tribunal Federal do Brasil – a primeira em 30 de agosto, e a segunda, que deveria ser decisiva, em 20 de setembro.
O último dia do evento foi marcado pela presença de cinco ministras: Povos Indígenas; Mulheres; Meio Ambiente e Mudanças Climáticas; Igualdade Racial; e Ciência, Tecnologia e Inovação. Juntos, esses ministros assinaram um conjunto de atos fundamentais para combater a violência e fortalecer a participação das mulheres indígenas nas políticas públicas.
Para Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas, a presença de mulheres indígenas na marcha envia uma mensagem forte contra o Marco Temporal na esperança de que ele seja derrotado: “Em outras ocasiões, já conseguimos reverter muitas medidas antiindígenas e muitos projetos de lei que visavam reverter nossos direitos”, diz ela.
O direito de existir
No dia 11 de setembro, primeiro dia do evento, foi realizada uma corte simbólica onde as mulheres puderam fazer denúncias públicas em nome do seu povo. Os temas variaram desde violência doméstica e redes de prostituição até ao aumento de casos de suicídio e incêndios criminosos em casas de oração tradicionais.
Os direitos à terra são cruciais para garantir todos os outros direitos dos povos indígenas, mas as mulheres na marcha não pararam por aí. Alguns fizeram exigências específicas aos seus biomas, como a insegurança alimentar na Caatinga, região semidesértica, e a falta de visibilidade política no Pampa, região mais meridional do país.
Acima de tudo, a marcha deste ano foi uma celebração de vitórias políticas. Pela primeira vez, foi realizada uma sessão solene no Congresso em homenagem à Terceira Marcha das Mulheres Indígenas. No mesmo evento, a deputada Célia Xakriabá, uma das três mulheres indígenas hoje presentes no Congresso, apresentou oficialmente um projeto de lei que visa combater a violência contra as mulheres indígenas.
À medida que avança o Marco Temporal, porém, o futuro dos direitos indígenas é incerto. As decisões tomadas pelo Supremo Tribunal na próxima sessão poderão consolidar direitos ou lavá-los pelo ralo. Seja como for, as mulheres indígenas não abrirão mão dos espaços que já conquistaram – e continuarão a lutar pela sua sobrevivência.
Cristiane Pankararu disse: “Estamos marchando hoje para apoiar nossos representantes que estão rompendo a bolha, mudando estruturas e ocupando cargos de tomada de decisão. Sempre que tentamos entrar no Congresso, na Câmara do Povo, em ocasiões anteriores, fomos recebidos por forças nacionais e repelidos com gás de pimenta e balas de borracha. Hoje, entramos pela porta da frente.
Nota: As entrevistas desta peça foram realizadas em português e posteriormente traduzidas pelo autor.
Fonte: https://www.truthdig.com/articles/thousands-of-indigenous-women-march-for-their-rights-in-brazil/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=thousands-of-indigenous-women-march-for-their-rights-in-brazil