O que aconteceu na Venezuela já que a votação terminou no domingo, o que representa o pior cenário para as eleições tão aguardadas.
Já se previa que seria muito difícil para o governo venezuelano, com todo seu poder militar e institucional acumulado e ameaçado por sanções crescentes dos Estados Unidos e da Europa, abrir mão de seu mandato sem garantias. No entanto, a retomada das negociações no início de julho entre Caracas e Washington e a progressão da campanha presidencial sem incidentes graves abriu um halo de esperança de que o povo venezuelano pudesse resolver seus conflitos de forma democrática.
Desde as eleições presidenciais de 2013, nas quais o atual presidente Nicolás Maduro venceu por uma margem estreita, não houve eleições presidenciais na Venezuela nas quais todos os atores políticos participaram. Em 2018, a oposição pediu abstenção do processo eleitoral e apenas alguns partidos marginais de sua órbita foram encorajados a participar, resultando em uma abstenção de 54%.
Agora estamos diante do pior cenário porque os dois principais candidatos, Maduro e Edmundo González Urrutia, estão, à sua maneira, ignorando o processo eleitoral e fechando caminhos para uma resolução democrática.
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) ofereceu resultados parciais à meia-noite de domingo, nos quais Maduro, com 80% dos votos contados, estava na liderança com 51,2% dos votos, sobre González com 44,2%. Este resultado parcial foi inconclusivo, pois o resultado pode mudar devido ao número de votos não contados. Mas as dúvidas saltaram para o paroxismo quando, sem publicar os registros eleitorais e a contagem final, conforme exigido por lei, e sem as auditorias subsequentes, o órgão eleitoral proclamou Maduro presidente por mais seis anos em um evento oficial. Isso pareceu um ato suspeitamente precipitado apenas 12 horas após o resultado parcial inicial ter sido divulgado.
É claro que a oposição rejeitou imediatamente os resultados divulgados, alegando que a contagem transmitida e impressa pela CNE, que detém por mandato legal, continha outros resultados.
A maior fraqueza da alegação da oposição é que sua rejeição e negação automática de resultados adversos faz parte do cenário político-eleitoral venezuelano. Nem mesmo no auge do chavismo, quando o ex-presidente Hugo Chávez liderava a oposição por até 20 pontos, os setores radicais da oposição se recusaram a aceitar e reconhecer o vencedor, declamando “lobo” em inúmeras e infundadas ocasiões. Além disso, o apelo de Juan Guaidó à abstenção em 2018 e a experiência subsequente de seu governo paralelo, que não tinha fundamento eleitoral algum, acompanham um acúmulo de ações antidemocráticas que prejudicam a integridade da reivindicação atual da oposição.
Nesta ocasião, porém, pela primeira vez, uma oposição mais racional do que o habitual publicou a contagem de votos emitida pelo próprio órgão eleitoral em cada seção eleitoral, na qual, aparentemente, González vence por ampla margem.
A força de suas evidências, que não foi negada pelo governo, é que a oposição está, ao que parece, mostrando as atas oficiais emitidas pela própria CNE. Sua alegação não é sobre alguma falha no processo ou a parcialidade de qualquer autoridade. O processo eleitoral como um todo foi reconhecido como legítimo por todos os atores nacionais e internacionais. Estamos lidando, então, com nada mais e nada menos do que a soma final das folhas de contagem que já foram impressas oficialmente, então o clamor é reduzido a uma divulgação oficial das folhas de contagem para que os números possam ser examinados e comparados.
“O lobo” finalmente chegou?
Vários outros candidatos, incluindo Benjamín Rausseo e Antonio Ekarri, fizeram o mesmo pedido para a publicação dos resultados concretos — não apenas os resultados gerais, que foram publicados apenas parcialmente, mas também os resultados precisos por estado, município e seção eleitoral, conforme exigido por lei para corroborar as folhas de contagem já nas mãos de diferentes atores que participaram do processo. Essa demanda não se limita a atores internos, mas também a atores e observadores internacionais.
Pressão internacional
Os países latino-americanos são muito protetores do respeito ao processo democrático. O sufrágio universal tem sido uma luta histórica que custou sangue e suor por parte de setores populares, de esquerda e progressistas da região. Avalizar um triunfo sem o respaldo de evidências eleitorais significa, portanto, colocar em risco a própria noção de democracia. Isso poderia encorajar o desencadeamento de dinâmicas paraeleitorais que, por sua vez, seriam um presente para setores da direita radical na região que historicamente se opuseram a esse direito constitucional.
Talvez por essa razão, aliados do governo venezuelano, incluindo as chancelarias do México, Brasília e Bogotá, tenham pedido a publicação dos registros eleitorais como forma de verificar a veracidade dos resultados oficiais. Essa demanda é invariável nos discursos oficiais e diplomáticos emanados tanto dos adversários quanto dos aliados do partido governante em Caracas.
O presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador criticou a Organização dos Estados Americanos por seu intervencionismo nas eleições venezuelanas. No entanto, ele também disse que “vamos esperar o resultado e, quando a recontagem for realizada, veremos qual é o processo legal e, então, faremos um pronunciamento”.
Da Colômbia, o governo de Gustavo Petro, que tem trabalhado arduamente pela reinserção da Venezuela na comunidade internacional e tem se manifestado contra as sanções, também solicitou, por meio de seu chanceler Luis Gilberto Murillo, “conhecer a apuração dos resultados finais e que estes sejam auditados pelo mundo”.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, emitiu uma declaração semelhante: “Quando os resultados finais forem apresentados e confirmados como verdadeiros, todos nós teremos a obrigação de reconhecer os resultados eleitorais da Venezuela”. O Brasil já havia vetado a presença de seu embaixador na cerimônia de proclamação de Maduro, realizada menos de 12 horas após a divulgação do primeiro resultado parcial.
A prudência de Washington tem sido sem precedentes, dada a maneira agressiva a que a Casa Branca está acostumada em suas negociações com Caracas. Uma ligação entre o presidente Joe Biden e Lula alinhou a posição dos EUA com a das diplomacias mais moderadas da região.
De especial importância são as posições do Carter Center e das Nações Unidas, uma vez que sua participação no processo eleitoral foi acordada nos acordos de Barbados, assinados pelo governo e pela oposição em 2023. O primeiro já declarou que “a eleição presidencial venezuelana de 2024 não cumpriu com os parâmetros e padrões internacionais de integridade eleitoral e não pode ser considerada democrática”. Esta entidade de verificação eleitoral tem um significado simbólico, pois foi uma das que reconheceu a eleição de 1998 em que Chávez ganhou a presidência pela primeira vez e defendeu a integridade do resultado daquela época contra vozes críticas na comunidade internacional.
Por sua vez, Stéphane Dujarric, porta-voz do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, apelou a que “os resultados das eleições e a repartição por assembleias de voto sejam publicados pontualmente”.
A diferença no momento atual, em relação às eleições anteriores e em termos de diplomacia, é que diferentes atores parecem estar alinhados em torno de uma demanda muito concreta e que foge aos parâmetros ideológicos.
A violência retorna à Venezuela
Os protestos não demoraram a acontecer. Assim que Maduro foi proclamado presidente em um ato tão solene quanto apressado, multidões de pessoas descontentes e indignadas tomaram as ruas por todo o país. Essas manifestações não ocorreram em redutos da oposição, como geralmente acontece. Neste caso, as áreas urbanizadas das cidades que são historicamente anti-Chávez permaneceram completamente calmas, pois a liderança da oposição pediu às pessoas que não tomassem as ruas.
Os protestos partiram dos bairros populares que durante anos foram a zona de conforto do chavismo e onde, ao que parece, se os números publicados pela oposição se confirmarem, o movimento sofreu um colapso eleitoral no domingo.
As mobilizações, muitas das quais ocorreram de forma pacífica, também incluíram saques, incêndios em instituições públicas — como as sedes de vários gabinetes de prefeitos, e a vandalização de várias estátuas, entre elas as de Chávez. O ministro da defesa, Vladimir Padrino, relatou a morte de um membro da Guarda Nacional e 48 oficiais feridos.
A resposta do governo tem sido principalmente por meio de forças para-policiais que entraram em choque com os manifestantes, frequentemente brandindo armas de fogo e, em algumas ocasiões, atirando para o ar para dispersar as manifestações. Centenas de pessoas foram presas e alguns meios de comunicação relataram pelo menos sete mortes.
Alguma calma foi sentida na quarta-feira, após intensas mobilizações chavistas no dia anterior, embora o clima continue muito tenso.
Do jeito que as coisas estão, estamos preparados para um resultado oficial, cuja contagem ainda não foi concluída e que não passou pelas auditorias padrão estabelecidas pela lei eleitoral, e um resultado não oficial, publicado pela oposição em um site, que em teoria somaria as folhas de contagem emitidas pelo próprio CNE e produziria outro resultado, que daria uma vitória clara a González.
Qual das duas posições é precisa? Teremos que esperar a publicação do registro de votação pelo CNE para descobrir — é o que todos os atores políticos nacionais e internacionais estão exigindo. A alternativa é interromper qualquer normalização das relações da Venezuela com o mundo e colocar o país caribenho em uma situação de instabilidade prolongada.
Fonte: https://www.truthdig.com/articles/has-the-wolf-finally-come-for-venezuela/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=has-the-wolf-finally-come-for-venezuela