Marx: Trabalho alienado (I. Os fundamentos da teoria dialética da sociedade) [Herbert Marcuse Reason & Revolution. Parte II, The Rise of Social Theory]

Marx’s writings between 1844 and 1846 treat the form of labor in modern society as constituting the total ‘alienation’ of man. The employment of this category links Marx’s economic analysis with a basic category of the Hegelian philosophy. The social division of labor, Marx declares, is not carried out with any consideration for the talents of individuals and the interest of the whole, but rather takes place entirely according to the laws of capitalist commodity production. Under these laws, the product of labor, the commodity, seems to determine the nature and end of human activity. In other words, the materials that should serve life come to rule over its content and goal, and the consciousness of man is completely made victim to the relationships of material production.

The materialistic proposition that is the starting point of Marx’s theory thus states, first, an historical fact, exposing the materialistic character of the prevailing social order in which an uncontrolled economy legislates over all human relations. At the same time, Marx’s proposition is a critical one, implying that the prevailing relation between consciousness and social existence is a false one that must be overcome before the true relation can come to light. The truth of the materialist thesis is thus to be fulfilled in its negation.

Marx emphasizes time and again that his materialistic starting point is forced upon him by the materialistic quality of the society he analyzes. He states that he begins with a ‘fact,’ an ‘economic fact’ recognized even by classical political economy. As modern society runs its course, ‘the worker becomes the poorer the more wealth he produces and the more his production increases in power and extent. The worker becomes a cheaper commodity the more commodities he produces. Hand in hand with the exploitation (Verwertung) of the objective world goes, the depreciation of the human world’. Classical political economy (Marx quotes Adam Smith and J. B. Say) admits that even great social wealth means nothing but ‘stationary poverty’ for the worker. These economists had shown that poverty is not at all the result of adverse external circumstance, but of the prevailing mode of labor itself. ‘In the progressing condition of society the destruction and impoverishment of the worker is the product of his own labor and of the wealth he has himself produced. Misery thus springs from the nature of the prevailing mode of labor’ and is rooted in the very essence of modern society.

What significance does this mode of labor have as far as the development of man is concerned? With this question, the Marxian theory leaves the plane of political economy. The totality of economic relations, laws, and institutions may not be treated simply as an isolated objective cluster of facts, but as making up a historical form within which men carry on their lives. Freed from the limitations of a specialized science, the economic categories are seen to be determining factors for human existence (Daseinsformen, Existenzbestimmungen), even if they denote objective economic facts (as in the case of commodity, value, ground rent). Far from being a mere economic activity (Erwerbstätigkeit), labor is the ‘existential activity’ of man, his ‘free, conscious activity’ — not a means for maintaining his life (Lebensmittel) but for developing his ‘universal nature’. The new categories will evaluate the economic reality with a view to what it has made of man, of his faculties, powers, and needs.

Marx summarizes these human qualities when he speaks of the ‘universal essence of man’; his examination of the economy is specifically carried on with the question in mind whether that economy realizes man’s Gattungswesen (universelles Wesen).

Estes termos remetem a Feuerbach e a Hegel. A própria natureza do homem está em sua universalidade. Suas faculdades intelectuais e físicas só podem ser preenchidas se todos os homens existirem como homens, na riqueza desenvolvida de seus recursos humanos. O homem só é livre se todos os homens forem livres e existirem como “seres universais”. Quando esta condição for atingida, a vida será moldada pelas potencialidades do gênero, o Homem, que abraça as potencialidades de todos os indivíduos que o compõem. A ênfase nesta universalidade traz a natureza também para o autodesenvolvimento da humanidade. O homem é livre se “a natureza é sua obra e sua realidade”, para que ele “se reconheça em um mundo que ele mesmo fez”.

Tudo isso tem uma óbvia semelhança com a idéia de Hegel da razão. Marx chega ao ponto de descrever a auto-realização do homem em termos da unidade entre o pensamento e o ser. Todo o problema, porém, não é mais filosófico, pois a auto-realização do homem exige agora a abolição do modo de trabalho prevalecente, e a filosofia não pode produzir este resultado. A crítica começa em termos filosóficos, porque a escravidão do trabalho e sua libertação são condições semelhantes que vão além da estrutura da economia política tradicional e afetam os próprios fundamentos da existência humana (que são o próprio domínio da filosofia), mas Marx se afasta da terminologia filosófica assim que elabora sua própria teoria. O caráter crítico e transcendental das categorias econômicas, até então expressas por conceitos filosóficos, mais tarde, em sua Capital, é demonstrado pelas próprias categorias econômicas.

Marx explica a alienação do trabalho como exemplificada, em primeiro lugar, na relação do trabalhador com o produto de seu trabalho e, em segundo lugar, na relação do trabalhador com sua própria atividade. O trabalhador na sociedade capitalista produz mercadorias. A produção em grande escala de mercadorias requer capital, grandes agregações de riqueza utilizadas exclusivamente para promover a produção de mercadorias. As commodities são produzidas por empreendedores privados independentes para fins de venda lucrativa. O trabalhador trabalha para o capitalista, a quem ele se entrega, através do contrato de salário, o produto de sua mão-de-obra. O capital é o poder de dispor sobre os produtos da mão-de-obra. Quanto mais o trabalhador produz, maior é o poder do capital e menores são os meios do próprio trabalhador para se apropriar de seus produtos. A mão-de-obra torna-se assim a vítima de um poder que ela mesma criou.

Marx resume este processo da seguinte forma: O objeto que a mão-de-obra produz, seu produto, é encontrado como uma entidade estranha, uma força que se tornou independente de seu produtor. A realização da mão de obra é sua objetivação. Sob as condições econômicas predominantes, esta realização de trabalho aparece como seu oposto, a negação [Entwirklichung] do operário. A objetivação aparece como perda e escravidão pelo objeto, e a apropriação como alienação e expropriação”. Uma vez voltado para as leis de produção capitalista de mercadorias, o trabalho é inevitavelmente empobrecido. Pois, “quanto mais o trabalhador labuta, mais poderoso se torna o mundo alienígena dos objetos que ele produz para se opor a ele, e mais pobre se torna a própria mentira…”. Marx mostra este mecanismo em ação no movimento dos salários. As leis de produção de mercadorias, sem qualquer ajuda externa, mantêm os salários no nível de pobreza estacionária.

[Como resultado,] a realização de trabalho aparece como negação a tal ponto que o trabalhador é negado ao ponto de morrer de fome. A objetivação aparece como uma perda dos objetos a tal ponto que o trabalhador é privado dos objetos mais necessários da vida e do trabalho. Além disso, o próprio trabalho se torna um objeto do qual ele pode se tornar mestre somente pelo maior esforço e com interrupções incalculáveis. A apropriação do objeto aparece como uma alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz, menos ele possui e mais ele fica sob o domínio de seu produto, do capital.

O trabalhador alienado de seu produto é, ao mesmo tempo, alienado de si mesmo. Seu próprio trabalho não se torna mais seu, e o fato de que ele se torna propriedade de outro, é uma expropriação que toca a própria essência do homem. O trabalho em sua verdadeira forma é um meio para a verdadeira auto-realização do homem, para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades; a utilização consciente das forças da natureza deve ter lugar para sua satisfação e prazer. Em sua forma atual, no entanto, ele paralisa todas as faculdades humanas e exige satisfação. O trabalhador “não afirma, mas contradiz sua essência”. Em vez de desenvolver suas energias físicas e mentais livres, ele mortifica seu corpo e arruína sua mente. Portanto, ele primeiro sente que está consigo mesmo quando está livre do trabalho e separado de si mesmo quando está trabalhando. Ele está em casa quando não trabalha e não está em casa quando trabalha. Seu trabalho, portanto, não é feito de livre vontade, mas sob compulsão. É trabalho forçado. Não é, portanto, a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para a satisfação de desejos fora dela”.

Em conseqüência, “O homem [o trabalhador] se sente agindo livremente apenas em suas funções animais como comer, beber e gerar… enquanto que em suas funções humanas ele não passa de um animal. O animal se torna o humano e o humano o animal”. Isto vale tanto para o trabalhador (o produtor expropriado), quanto para aquele que compra seu trabalho. O processo de alienação afeta todos os estratos da sociedade, distorcendo até mesmo as funções “naturais” do homem. Os sentidos, as principais fontes de liberdade e felicidade segundo Feuerbach, são reduzidos a um “senso de posse”. Eles vêem seu objeto apenas como algo que pode ou não ser apropriado. Mesmo o prazer e o prazer mudam das condições sob as quais os homens desenvolvem livremente sua “natureza universal” para modos de posse e aquisição “egoístas”.

A análise de Marx sobre o trabalho sob o capitalismo é, portanto, bastante profunda, indo mais além da estrutura das relações econômicas para o conteúdo humano real. Relações como aquelas entre capital e trabalho, capital e commodity, trabalho e commodity, e aquelas entre commodities são entendidas como relações humanas, relações na existência social do homem. Mesmo a instituição da propriedade privada aparece como “o produto, resultado e conseqüência inevitável do modo alienado de trabalho”, e deriva dos mecanismos do modo social de produção. A alienação do trabalho leva à divisão do trabalho tão característica de todas as formas de sociedade de classes: “Cada homem tem uma esfera de atividade particular e exclusiva, que lhe é imposta e da qual não pode escapar a uma divisão que não é superada quando a liberdade abstrata do indivíduo é proclamada na sociedade burguesa. O trabalho separado de seu objeto é, em última análise, uma “alienação do homem do homem”; os indivíduos são isolados uns dos outros e colocados uns contra os outros. Eles estão ligados nas mercadorias que trocam e não em suas pessoas. A alienação do homem em relação a si mesmo é simultaneamente um afastamento de seus semelhantes.

Os primeiros escritos de Marx são a primeira afirmação explícita do processo de reificação (Verdinglichung) através do qual a sociedade capitalista faz com que todas as relações pessoais entre os homens assumam a forma de relações objetivas entre as coisas. Marx expõe este processo em seu Capital como “o Fetichismo das Commodities”. O sistema do capitalismo relaciona os homens uns com os outros através das mercadorias que eles trocam. O status social dos indivíduos, seu padrão de vida, a satisfação de suas necessidades, sua liberdade e seu poder são todos determinados pelo valor de suas mercadorias. As capacidades e necessidades do indivíduo não têm parte na avaliação. Mesmo os atributos mais humanos do homem tornam-se uma função do dinheiro, o substituto geral para as mercadorias. Os indivíduos participam do processo social apenas como proprietários de mercadorias. Suas relações mútuas são as de suas mercadorias. A produção capitalista de commodities tem este resultado mistificante, que transforma as relações sociais dos indivíduos em ‘qualidades de … coisas em si [commodities] e ainda mais pronunciadamente transforma as inter-relações da própria produção em uma coisa [dinheiro]’. O resultado mistificante surge do modo específico de trabalho na produção de mercadorias, com seus indivíduos trabalhando independentemente uns dos outros, e satisfazendo suas próprias necessidades apenas através das do mercado:

O fetichismo das mercadorias tem sua origem … no caráter social peculiar da mão-de-obra que as produz.

Como regra geral, os artigos de utilidade tornam-se mercadorias, apenas porque são produtos do trabalho de indivíduos ou grupos de indivíduos que realizam seu trabalho independentemente uns dos outros. A soma total do trabalho de todos esses indivíduos privados forma o trabalho agregado da sociedade [gesellschaftliche Gesamtarbeit]. Como os produtores não entram em contato uns com os outros até trocarem seus produtos, o caráter social específico do trabalho de cada produtor não se mostra, exceto no ato da troca. Em outras palavras, o trabalho do indivíduo se afirma como parte do trabalho da sociedade, somente através das relações que o ato de troca estabelece diretamente entre os produtos, e indiretamente, através deles, entre os produtores. A estes últimos, portanto, as relações que ligam o trabalho de um indivíduo com o do resto aparecem, não como relações sociais diretas entre indivíduos no trabalho, mas como o que realmente são, relações materiais entre pessoas [sachliche Verhältnisse von Personen] e relações sociais entre as coisas.

O que esta reificação realiza? Ela estabelece as relações sociais reais entre os homens como um todo de relações objetivas, ocultando assim sua origem, seus mecanismos de perpetuação e a possibilidade de sua transformação. Acima de tudo, ela esconde seu núcleo e conteúdo humano. Se o salário, como o processo de reificação indicaria, expressa o valor do trabalho, a exploração é, na melhor das hipóteses, um julgamento subjetivo e pessoal. Se o capital não fosse nada além de um agregado de riqueza empregado na produção de mercadorias, então o capital pareceria ser o resultado cumulativo de habilidade produtiva e diligência. Se a criação de lucros fosse a qualidade peculiar do capital utilizado, tais lucros poderiam representar uma recompensa pelo trabalho do empresário. A relação entre capital e trabalho nesta base não envolveria nem iniquidade nem opressão; seria antes uma relação puramente objetiva, material, e a teoria econômica seria uma ciência especializada como qualquer outra. As leis da oferta e da demanda, a fixação do valor e dos preços, os ciclos comerciais, etc., seriam passíveis de estudo como leis e fatos objetivos, independentemente de seu efeito sobre a existência humana. O processo econômico da sociedade seria um processo natural, e o homem, com todas as suas necessidades e desejos, desempenharia nele o papel de um quantum matemático objetivo e não o de um sujeito consciente.

A teoria marxista rejeita tal ciência da economia e estabelece em seu lugar a interpretação de que as relações econômicas são relações existenciais entre os homens. Ela faz isso não em virtude de qualquer sentimento humanitário, mas em virtude do conteúdo real da própria economia. As relações econômicas só parecem ser objetivas por causa do caráter da produção de mercadorias. Tão logo se aprofunda sob este modo de produção e se analisa sua origem, pode-se ver que sua objetividade natural é mera semblante enquanto na realidade é uma forma histórica específica de existência que o homem se deu a si mesmo. Além disso, uma vez que este conteúdo venha à tona, a teoria econômica se tornaria uma teoria crítica. Quando se fala de propriedade privada, pensa-se que se trata de algo fora do homem. Quando se fala de trabalho, tem a ver imediatamente com o próprio homem”. A nova formulação da questão já envolve sua solução”. Assim que seu caráter mistificador é descoberto, as condições econômicas aparecem como a completa negação da humanidade. O modo de trabalho perverte todas as faculdades humanas, a acumulação de riqueza intensifica a pobreza e o progresso tecnológico leva à “regra da matéria morta sobre o mundo humano”. Os fatos objetivos ganham vida e entram em uma acusação da sociedade. As realidades econômicas exibem sua própria negatividade inerente.

Estamos aqui abordando as origens da dialética marxista. Para Marx, como para Hegel, a dialética toma nota do fato de que a negação inerente à realidade é “o princípio comovente e criativo”. A dialética é a “dialética da negatividade”. Todo fato é mais do que um simples fato; é uma negação e restrição das possibilidades reais. O trabalho assalariado é um fato, mas ao mesmo tempo é uma restrição ao trabalho livre que pode satisfazer as necessidades humanas. A propriedade privada é um fato, mas ao mesmo tempo é uma negação da apropriação coletiva da natureza por parte do homem.

A prática social do homem encarna a negatividade, bem como sua superação. A negatividade da sociedade capitalista reside em sua alienação do trabalho a negação desta negatividade virá com a abolição do trabalho alienado. A alienação assumiu sua forma mais universal na instituição da propriedade privada; as emendas serão feitas com a abolição da propriedade privada. É da maior importância notar que Marx vê a abolição da propriedade privada inteiramente como um meio para a abolição do “trabalho alienado” e não como um fim em si mesmo. A socialização dos meios de produção é, como tal, um fato meramente econômico, como qualquer outra instituição econômica. Sua pretensão de ser o início de uma nova ordem social depende do que o homem faz com os meios de produção socializados. Se estes não forem utilizados para o desenvolvimento e a gratificação do indivíduo livre, eles equivalerão simplesmente a uma nova forma de subjugar indivíduos a uma universalidade hipostatizada. A abolição da propriedade privada inaugura um sistema social essencialmente novo somente se os indivíduos livres, e não “a sociedade”, se tornarem senhores dos meios de produção socializados. Marx adverte expressamente contra essa outra “reificação” da sociedade: “É preciso, acima de tudo, evitar que a “sociedade” seja novamente colocada como uma abstração oposta ao indivíduo. O indivíduo é a entidade social [das gesellschaftliche Wesen]. A expressão de sua entidade … é, portanto, uma expressão e verificação da vida da sociedade”.

A verdadeira história da humanidade será, no sentido estrito, a história dos indivíduos livres, de modo que o interesse do todo será tecido na existência individual de cada um. Em todas as formas anteriores de sociedade, o interesse do todo estava em instituições sociais e políticas separadas, que representavam o direito da sociedade em oposição ao direito do indivíduo. A abolição da propriedade privada acabará com tudo isso de uma vez por todas, pois marcará “o retorno do homem da família, religião, estado, etc., a sua existência humana, isto é, social”.

São, portanto, os indivíduos livres, e não um novo sistema de produção, que exemplificam o fato de que o particular e o interesse comum foram fundidos. O indivíduo é o objetivo. Esta tendência “individualista” é fundamental como um interesse da teoria marxista. Mostramos o papel do universal nas teorias tradicionais, colocando ênfase no fato de que a realização humana, o que chamamos de “verdade” exemplificada, só poderia ser concebida em termos do conceito abstrato universal, desde que a sociedade mantivesse a forma que tinha. Atingidas por um conflito em todas as mãos entre os interesses individuais, as condições concretas da vida social ridicularizavam “a essência universal” do homem e da natureza. E como as realidades sociais predominantes contradiziam essa essência e, portanto, contradiziam “a verdade”, esta última não tinha refúgio a não ser a mente, onde era hipostatizada como um universal abstrato.

Marx explica como surgiu este estado de coisas, mostrando sua origem na divisão do trabalho da sociedade de classes e, particularmente, no divórcio que estava envolvido entre as forças intelectuais e materiais de produção.

As forças de produção, o estado da sociedade e a consciência podem e devem entrar em contradição umas com as outras, porque a divisão do trabalho implica a possibilidade, não o fato de que a atividade intelectual e material – gozo e trabalho, produção e consumo – recaiam sobre diferentes indivíduos … A divisão do trabalho … manifesta-se também na classe dominante como a divisão do trabalho mental e material, de modo que dentro desta classe uma parte aparece como os pensadores da classe … enquanto a atitude dos outros em relação a estas idéias e ilusões é mais passiva e receptiva, porque eles são na realidade os membros ativos desta classe e têm menos tempo para inventar ilusões e idéias sobre si mesmos … É evidente que fantasmas como ‘o Ser Superior’, ‘Noção’ … são meramente a expressão idealista, espiritual, a concepção aparentemente do indivíduo isolado, a imagem de grilhões e limitações muito empíricas, dentro das quais se move o modo de produção da vida, e a forma de relação sexual acoplada a ela.

Assim como materialmente a reprodução do todo social foi o resultado de forças cegas sobre as quais os poderes conscientes do homem não exerceram nenhuma orientação, assim mentalmente, o universal surgiu como uma realidade independente e criativa. Os grupos que governavam a sociedade eram obrigados a esconder o fato de que seus interesses eram privados, camuflando-os na “dignidade do universal”. Cada nova classe que se coloca no lugar de uma regra diante dela, é obrigada, meramente para realizar seu objetivo, a representar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade… Ela dará a suas idéias a forma da universalidade, e as representará como as únicas racionais, universalmente válidas”. A reivindicação da universalidade para as idéias de uma classe dominante é, portanto, parte dos mecanismos da regra de classe, e a crítica da sociedade de classes também destruirá suas reivindicações filosóficas.

Os conceitos universais empregados são, a princípio, aquelas formas de existência humana hipostatizantes desejadas – conceitos como razão, liberdade, justiça e virtude, e também Estado, sociedade, democracia. Todos eles prevêem que a essência universal do homem é materializada ou dentro das condições sociais prevalecentes ou além delas em um reino supra-histórico. Marx também aponta para o fato de que tais conceitos se tornam cada vez mais universais no âmbito do avanço da sociedade. As idéias de honra, lealdade, etc., que caracterizaram os tempos medievais e que eram as idéias dominantes da aristocracia, eram muito mais restritas no apelo e aplicadas a menos pessoas do que as idéias de liberdade, igualdade e justiça, da burguesia, que refletem a base mais abrangente daquela classe. O desenvolvimento de idéias dominantes acompanha e espelha uma crescente integração social e econômica. As abstrações mais gerais geralmente surgem apenas onde há o mais alto desenvolvimento concreto, onde uma característica parece ser possuída em conjunto por muitos e ser comum a todos. Então, não se pode mais pensar nisso de uma forma particular”. Quanto mais a sociedade avança, mais as “idéias abstratas se mantêm, ou seja, idéias que assumem cada vez mais a forma de universalidade”.

Este processo, entretanto, se transforma em seu oposto assim que as classes são abolidas e o interesse do todo é cumprido na existência de cada indivíduo, pois então “não é mais necessário representar um interesse particular como geral ou “o interesse geral” como governante”. O indivíduo torna-se o verdadeiro sujeito da história, de tal forma que ele mesmo é o universal e manifesta a “essência universal” do homem.

O comunismo, com sua “abolição positiva da propriedade privada”, é assim, por sua própria natureza, uma nova forma de individualismo, e não apenas um novo e diferente sistema econômico, mas um diferente sistema de vida. O comunismo é “a verdadeira apropriação [Aneignung] da essência do homem pelo e para o homem, portanto é o retorno completo do homem a si mesmo como um “ser social”, isto é, humano”. É a “verdadeira solução do conflito do homem com a natureza e com o homem, do conflito entre existência e essência, reificação e autodeterminação, liberdade e necessidade, indivíduo e gênero”. As contradições que estão sob a filosofia de Hegel e toda a filosofia tradicional se dissolverão nesta nova forma de sociedade. Pois estas são contradições históricas enraizadas nos antagonismos da sociedade de classes. As idéias filosóficas expressam as condições históricas materiais, que se desprendem de sua forma filosófica assim que são submetidas ao escrutínio da teoria crítica e são apreendidas pela prática social consciente.

A filosofia de Hegel girava em torno da universalidade da razão; era um sistema racional com todas as suas partes (tanto as esferas subjetivas quanto as objetivas) integradas em um todo abrangente. Marx mostra que a sociedade capitalista primeiro pôs em prática tal universalidade. O capitalismo desenvolveu as forças produtivas para a totalidade de um sistema social uniforme. O comércio universal, a competição universal e a interdependência universal do trabalho foram feitos para prevalecer e transformaram os homens em “indivíduos mundialmente históricos, empiricamente universais”.

Esta universalidade, entretanto, como já explicamos, é negativa, pois as forças produtivas são utilizadas, assim como as coisas que o homem produz com elas, de uma forma que as faz parecer produtos de um poder estrangeiro descontrolado. É “um fato empírico que indivíduos separados, com a ampliação de sua atividade em atividade histórica mundial, se tornaram cada vez mais escravizados sob um poder estranho a eles… um poder que se tornou cada vez mais enorme e, em última instância, acaba se tornando o mercado mundial”. A distribuição da oferta sob a produção internacional de mercadorias é um processo universal cego e anárquico, no qual a demanda do indivíduo só é satisfeita se ele puder atender às exigências do intercâmbio. Marx chama esta relação anárquica de oferta de exigir uma forma “natural” de integração social, o que significa que ela parece ter a força de uma lei natural em vez de operar, como deveria, sob o controle conjunto de todos os homens.

Fonte: https://www.marxists.org/reference/archive/marcuse/works/reason/ch02-4.htm

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