Reificação e a Consciência do Proletariado (Georg Lukacs, History & Class Consciousness )

Ser radical é ir à raiz da questão. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem.

Marx: Crítica da Filosofia de Direito de Hegel.

Não é por acaso que Marx deveria ter começado com uma análise das mercadorias quando, nas duas grandes obras de seu período de maturidade, ele se propôs a retratar a sociedade capitalista em sua totalidade e a pôr a nu sua natureza fundamental. Pois nesta fase da história da humanidade não há nenhum problema que não conduza de volta a essa questão e não há solução que não possa ser encontrada na solução do enigma da estrutura das mercadorias. É claro que o problema só pode ser discutido com este grau de generalidade se ele atingir a profundidade e a amplitude a serem encontradas nas próprias análises de Marx. Ou seja, o problema das commodities não deve ser considerado isoladamente ou mesmo considerado como o problema central da economia, mas como o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todos os seus aspectos. Somente neste caso, a estrutura das relações mercadorias pode ser feita para produzir um modelo de todas as formas objetivas da sociedade burguesa, juntamente com todas as formas subjetivas correspondentes a elas.

I: O Fenômeno da Reificação

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A essência da estrutura da mercadoria tem sido frequentemente apontada. Sua base é que uma relação entre as pessoas assume o caráter de uma coisa e assim adquire uma “objetividade fantasma”, uma autonomia que parece tão estritamente racional e abrangente que esconde cada traço de sua natureza fundamental: a relação entre as pessoas. Está além do escopo deste ensaio discutir a importância central deste problema para a própria economia. Também não devemos considerar suas implicações para as doutrinas econômicas dos vulgares marxistas, que decorrem do abandono deste ponto de partida.
Nossa intenção aqui é nos basearmos nas análises econômicas de Marx e proceder a partir daí para uma discussão dos problemas que surgem do caráter fetiche das mercadorias, tanto como uma forma objetiva como também como uma postura subjetiva correspondente a ela. Somente compreendendo isto, podemos obter uma visão clara dos problemas ideológicos do capitalismo e de sua queda.
Antes de abordar o problema em si, devemos ter bem claro em nossa mente que o fetichismo das mercadorias é um problema específico de nossa era, a era do capitalismo moderno. A troca de mercadorias e as correspondentes relações subjetivas e objetivas de mercadorias existiam, como sabemos, quando a sociedade ainda era muito primitiva. O que está em questão aqui, entretanto, é a questão: até que ponto a troca de mercadorias, juntamente com suas conseqüências estruturais, é capaz de influenciar a vida total externa e interna da sociedade? Assim, a medida em que tal intercâmbio é a forma dominante de mudança metabólica em uma sociedade não pode ser simplesmente tratada em termos quantitativos – como harmonizaria com os modernos modos de pensamento já corroídos pelos efeitos reificadores da forma de mercadoria dominante. A distinção entre uma sociedade onde esta forma é dominante, permeando toda expressão de vida, e uma sociedade onde ela apenas faz uma aparência episódica é essencialmente de qualidade. Pois, dependendo do caso, todos os fenômenos subjetivos nas sociedades em questão são objetivados de maneiras qualitativamente diferentes.
Marx coloca grande ênfase na aparência essencialmente episódica da forma de mercadoria nas sociedades primitivas: “A troca direta, a forma natural original de troca, representa antes o início da transformação dos valores de uso em mercadorias, do que a das mercadorias em dinheiro. O valor de troca ainda não tem nenhuma forma própria, mas ainda está diretamente ligado ao valor de uso. Isto se manifesta de duas maneiras. A produção, em toda sua organização, visa a criação de valores de uso e não de valores de troca, e é somente quando seu fornecimento excede a medida de consumo que os valores de uso deixam de ser valores de uso, e se tornam meios de troca, ou seja, mercadorias. Ao mesmo tempo, elas se tornam mercadorias somente dentro dos limites de serem valores de uso distribuídos em pólos opostos, de modo que as mercadorias a serem trocadas por seus detentores devem ser valores de uso para ambos – cada mercadoria para seu não detentor. De fato, a troca de mercadorias não se origina dentro das comunidades primitivas, mas onde elas terminam, em suas fronteiras, nos poucos pontos em que entram em contato com outras comunidades. É aí que começa a troca e, a partir daí, ela volta ao interior da comunidade, decompondo-a”. [1] Observamos que a observação sobre o efeito desintegrador de uma troca de mercadorias dirigida sobre si mesma mostra claramente a mudança qualitativa engendrada pelo domínio das mercadorias.
Entretanto, mesmo quando as commodities têm este impacto na estrutura interna de uma sociedade, isto não é suficiente para torná-las constitutivas dessa sociedade. Para conseguir isso seria necessário – como enfatizamos acima – que a estrutura das commodities penetrasse na sociedade em todos os seus aspectos e a remodelasse em sua própria imagem. Não basta apenas estabelecer um vínculo externo com processos independentes preocupados com a produção de valores de troca. A diferença qualitativa entre a mercadoria como uma forma entre muitas que regulam o metabolismo da sociedade humana e a mercadoria como princípio estruturante universal tem efeitos além do fato de que a relação de mercadoria como fenômeno isolado exerce uma influência negativa na melhor das hipóteses sobre a estrutura e organização da sociedade. A distinção também tem repercussões sobre a natureza e a validade da própria categoria. Quando a mercadoria é universal, ela se manifesta de forma diferente da mercadoria como um fenômeno particular, isolado e não dominante.
O fato de que os limites carecem de definição precisa não deve ser permitido desfocar a natureza qualitativa da distinção decisiva. A situação em que a troca de mercadorias não é dominante foi definida por Marx da seguinte forma: “A relação quantitativa na qual os produtos são trocados é, a princípio, bastante arbitrária. Eles assumem a forma de mercadorias na medida em que são permutáveis, ou seja, expressões de um e do mesmo terço. A troca contínua e a reprodução mais regular para troca reduz cada vez mais esta arbitrariedade. Mas a princípio não para o produtor e consumidor, mas para seu intermediário, o comerciante, que compara o dinheiro – preços e embolsa a diferença. É através de seus próprios movimentos que ele estabelece a equivalência. O capital do comerciante é originalmente apenas o movimento interveniente entre extremos que ele não controla e entre premissas que ele não cria”. [2]
E este desenvolvimento da mercadoria ao ponto de se tornar a forma dominante na sociedade não se deu até o advento do capitalismo moderno. Portanto, não é de se admirar que a natureza pessoal das relações econômicas ainda fosse compreendida claramente em algumas ocasiões no início do desenvolvimento capitalista, mas que à medida que o processo avançou e as formas se tornaram mais complexas e menos diretas, tornou-se cada vez mais difícil e raro encontrar alguém penetrando no véu da reificação. Marx vê o assunto desta maneira: “Nas formas precedentes da sociedade, esta mistificação econômica surgiu principalmente com respeito ao dinheiro e ao capital que vence juros. Na natureza das coisas é excluída, em primeiro lugar, onde predomina a produção pelo valor de uso, por exigências pessoais imediatas; e em segundo lugar, onde a escravidão ou a servidão formam o amplo fundamento da produção social, como na antiguidade e durante a Idade Média. Aqui, o domínio dos produtores pelas condições de produção é ocultado pelas relações de domínio e servidão que aparecem e são evidentes como a força motriz direta do processo de produção”. [3]
A mercadoria só pode compreender em sua essência não distorcida quando ela se torna a categoria universal da sociedade como um todo. Somente neste contexto a reificação produzida pelas relações de mercadorias assume importância decisiva tanto para a evolução objetiva da sociedade quanto para a postura adotada pelos homens em relação a ela. Somente então a mercadoria torna-se crucial para a subjugação da consciência do homem às formas em que esta reificação encontra expressão e para suas tentativas de compreender o processo ou de se rebelar contra seus efeitos desastrosos e se libertar da servidão à “segunda natureza” assim criada.
Marx descreve o fenômeno básico da reificação da seguinte forma:
“Uma mercadoria é, portanto, uma coisa misteriosa, simplesmente porque nela o caráter social do trabalho dos homens lhes aparece como um caráter objetivo estampado no produto desse trabalho; porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio trabalho é apresentada a eles como uma relação social existente não entre si, mas entre os produtos de seu trabalho. Esta é a razão pela qual os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais cujas qualidades são ao mesmo tempo perceptíveis e imperceptíveis pelos sentidos … É apenas uma relação social definida entre os homens que assume, aos seus olhos, a forma fantástica de uma relação entre as coisas”. [4]
O que é de importância central aqui é que devido a esta situação a própria atividade do homem, seu próprio trabalho se torna algo objetivo e independente dele. algo que o controla em virtude de uma autonomia alheia ao homem. Há tanto um lado objetivo quanto um lado subjetivo neste fenômeno. Objetivamente, surge um mundo de objetos e relações entre as coisas (o mundo das mercadorias e seus movimentos no mercado). As leis que regem estes objetos são de fato gradualmente descobertas pelo homem, mas mesmo assim o enfrentam como forças invisíveis que geram seu próprio poder. O indivíduo pode usar seu conhecimento destas leis em seu próprio benefício, mas não é capaz de modificar o processo por sua própria atividade. Subjetivamente – onde a economia de mercado foi plenamente desenvolvida – a atividade do homem se afasta de si mesmo, ela se transforma em uma mercadoria que, sujeita à objetividade não humana das leis naturais da sociedade, deve seguir seu próprio caminho independentemente do homem, como qualquer artigo de consumo. O que é característico da era capitalista”, diz Marx, “é que, aos olhos do próprio trabalhador, a força de trabalho assume a forma de uma mercadoria pertencente a ele”. Por outro lado, é somente neste momento que a forma de mercadoria dos produtos do trabalho se torna geral”. [5]
Assim, a universalidade da forma de mercadoria é responsável tanto objetiva quanto subjetivamente pela abstração do trabalho humano incorporado às mercadorias. (Por outro lado, esta universalidade se torna historicamente possível porque este processo de abstração foi concluído). Objetivamente, na medida em que a forma de mercadoria facilita a troca igualitária de objetos qualitativamente diferentes, ela só pode existir se essa igualdade formal for de fato reconhecida – de qualquer forma nesta relação, o que de fato lhes confere sua natureza de mercadoria. Subjetivamente, esta igualdade formal do trabalho humano em abstrato não é apenas o fator comum ao qual as diversas mercadorias são reduzidas; ela também se torna o verdadeiro princípio que rege a produção real de mercadorias.
Claramente, não pode ser nosso objetivo aqui descrever, mesmo em linhas gerais, o crescimento do processo moderno do trabalho, do trabalhador isolado, “livre” e da divisão do trabalho. Aqui só precisamos estabelecer que o trabalho, abstrato, igual. trabalho comparável, mensurável com precisão crescente de acordo com o tempo socialmente necessário para sua realização, o trabalho da divisão capitalista do trabalho existente tanto como pressuposto quanto como produto da produção capitalista, nasce apenas no curso do desenvolvimento do sistema capitalista. Somente então se torna uma categoria da sociedade influenciando decisivamente a forma objetiva das coisas e das pessoas na sociedade assim emergindo, sua relação com a natureza e as possíveis relações dos homens uns com os outros. [6]
Se seguirmos o caminho percorrido pelo trabalho em seu desenvolvimento desde o artesanato via cooperação e fabricação até a indústria de máquinas, podemos ver uma tendência contínua para uma maior racionalização, a eliminação progressiva dos atributos qualitativos, humanos e individuais do trabalhador. Por um lado, o processo de trabalho é progressivamente dividido em operações abstratas, racionais e especializadas para que o trabalhador perca o contato com o produto acabado e seu trabalho seja reduzido à repetição mecânica de um conjunto especializado de ações. Por outro lado, o período de tempo necessário para que o trabalho seja realizado (que forma a base do cálculo racional) é convertido, à medida que se intensifica a mecanização e a racionalização, de um número médio meramente empírico para um trabalho de cálculo objetivo, que confronta o trabalhador como uma realidade fixa e estabelecida. Com a moderna análise ‘psicológica’ do processo de trabalho (no Taylorismo) esta mecanização racional se estende até a ‘alma’ do trabalhador: mesmo seus atributos psicológicos são separados de sua personalidade total e colocados em oposição a ela, de modo a facilitar sua integração em sistemas racionais especializados e sua redução a conceitos estatisticamente viáveis. [7]
Estamos preocupados acima de tudo com o princípio em ação aqui: o princípio da racionalização baseada no que é e pode ser calculado. As principais mudanças sofridas pelo sujeito e objeto do processo econômico são as seguintes: (1) em primeiro lugar, a análise matemática dos processos de trabalho denota uma ruptura com a unidade orgânica, irracional e qualitativamente determinada do produto. Racionalização no sentido de ser capaz de prever com cada vez maior precisão todos os resultados a serem alcançados é apenas adquirida pela divisão exata de cada complexo em seus elementos e pelo estudo das leis especiais que regem a produção. Por isso, deve declarar guerra à fabricação orgânica de produtos inteiros com base na tradicional amálgama de experiências empíricas de trabalho: a racionalização é impensável sem especialização. [8]
O artigo acabado deixa de ser o objeto do processo de trabalho. Este último transforma-se na síntese objetiva de sistemas especiais racionalizados cuja unidade é determinada por puro cálculo e que, portanto, devem parecer estar arbitrariamente ligados entre si.
Isto destrói a necessidade orgânica com a qual as operações especiais inter-relacionadas são unificadas no produto final. A unidade de um produto como mercadoria não coincide mais com sua unidade como valor de uso: conforme a sociedade se torna mais radicalmente capitalista, a crescente autonomia técnica das operações especiais envolvidas na produção se expressa também, como autonomia econômica, como a crescente relativização do caráter de mercadoria de um produto nas diversas etapas da produção. [9] Assim, é possível separar à força a produção de um valor de uso no tempo e no espaço. Isto vai de mãos dadas com a união no tempo e no espaço de operações especiais que estão relacionadas a um conjunto de valores de uso heterogêneos.
(2) Em segundo lugar, esta fragmentação do objeto de produção implica necessariamente a fragmentação de seu objeto. Em conseqüência da racionalização do processo de trabalho, as qualidades humanas e idiossincrasias do trabalhador aparecem cada vez mais como meras fontes de erro quando contrastadas com estas leis especiais abstratas funcionando de acordo com previsões racionais. Nem objetivamente nem em sua relação com seu trabalho o homem aparece como o autêntico mestre do processo; pelo contrário, ele é uma parte mecânica incorporada a um sistema mecânico. Ele a considera já pré-existente e auto-suficiente, ela funciona independentemente dele e ele tem que estar em conformidade com suas leis, quer ele goste ou não. [10] À medida que o trabalho é progressivamente racionalizado e mecanizado, sua falta de vontade é reforçada pela forma como sua atividade se torna cada vez menos ativa e mais e mais contemplativa [11]. A postura contemplativa adotada em relação a um processo mecanicamente conforme às leis fixas e decretada independentemente da consciência do homem e impermeável à intervenção humana, ou seja, um sistema perfeitamente fechado, deve igualmente transformar as categorias básicas da atitude imediata do homem para com o mundo: reduz espaço e tempo a um denominador comum e degrada o tempo à dimensão do espaço.
Marx o coloca assim:
“Através da subordinação do homem à máquina, surge a situação em que o homem é apagado por seu trabalho; na qual o pêndulo do relógio tornou-se uma medida tão precisa da atividade relativa de dois trabalhadores quanto da velocidade de duas locomotivas. Portanto, não devemos dizer que a hora de um homem vale a hora de outro homem, mas sim que um homem durante uma hora vale tanto quanto outro homem durante uma hora. O tempo é tudo, o homem não é nada; ele é, no máximo, a encarnação do tempo. A qualidade não importa mais. Só a quantidade decide tudo: hora por hora, dia por dia …. ”[12]
Assim, o tempo desdobra sua natureza qualitativa, variável, fluida; ele congela em um contínuo exatamente delimitado, quantificável, cheio de “coisas” quantificáveis (o “desempenho” reificado, mecanicamente objetivado do trabalhador, totalmente separado de sua personalidade humana total: em suma, ele se torna espaço[13]. Neste ambiente onde o tempo se transforma em um espaço físico abstrato, exatamente mensurável, um ambiente ao mesmo tempo causa e efeito da produção científica e mecanicamente fragmentada e especializada do objeto do trabalho, os sujeitos do trabalho também devem ser racionalmente fragmentados. Por um lado, a objetivação de sua força de trabalho em algo oposto a sua personalidade total (processo já realizado com a venda dessa força de trabalho como mercadoria) é agora transformada na permanente realidade inelutável de sua vida diária. Aqui, também, a personalidade não pode fazer mais do que olhar impotente enquanto sua própria existência é reduzida a uma partícula isolada e alimentada em um sistema alienígena. Por outro lado, a desintegração mecânica do processo de produção em seus componentes também destrói aqueles laços que ligavam indivíduos a uma comunidade nos dias em que a produção ainda era “orgânica”. Também neste aspecto, a mecanização faz deles átomos abstratos isolados, cujo trabalho já não os reúne direta e organicamente; torna-se cada vez mais mediada exclusivamente pelas leis abstratas do mecanismo que os aprisiona.
A organização interna de uma fábrica não poderia ter tal efeito – mesmo dentro da própria fábrica – se não fosse pelo fato de conter de forma concentrada toda a estrutura da sociedade capitalista. A opressão e uma exploração que não conhece limites e despreza toda dignidade humana eram conhecidas até mesmo na era pré-capitalista. Assim também a produção em massa com mão-de-obra mecânica e padronizada, como podemos ver, por exemplo, com a construção de canais no Egito e na Ásia Menor e as minas em Roma. [14] Mas projetos em massa deste tipo nunca puderam ser mecanizados racionalmente; eles permaneceram fenômenos isolados dentro de uma comunidade que organizou sua produção em uma base diferente (“natural”) e que, portanto, viveu uma vida diferente. Os escravos submetidos a esta exploração, portanto, estavam fora do que era considerado como sociedade “humana” e mesmo os maiores e mais nobres pensadores da época eram incapazes de considerar seu destino como o dos seres humanos.
medida que a mercadoria se torna universalmente dominante, esta situação muda radicalmente e qualitativamente. O destino do trabalhador torna-se o destino da sociedade como um todo; de fato, este destino deve se tornar universal, pois de outra forma a industrialização não poderia se desenvolver nesta direção. Pois depende do surgimento do trabalhador “livre” que é livre para levar sua força de trabalho ao mercado e oferecê-la para venda como uma mercadoria “pertencente” a ele, uma coisa que ele “possui”.
Embora este processo ainda esteja incompleto, os métodos utilizados para extrair a mão-de-obra excedente são, é verdade, mais obviamente brutal do que na fase posterior, mais altamente desenvolvida, mas o processo de reificação do trabalho e, portanto, também da consciência do trabalhador está muito menos avançado. A reificação exige que uma sociedade aprenda a satisfazer todas as suas necessidades em termos de troca de mercadorias. A separação do produtor de seus meios de produção, a dissolução e destruição de todas as unidades de produção “naturais”, etc., e todas as condições sociais e econômicas necessárias para o surgimento do capitalismo moderno tendem a substituir as relações “naturais” que exibem mais claramente as relações humanas por relações racionalmente reificadas. “As relações sociais entre indivíduos no desempenho de seu trabalho”, observa Marx com referência às sociedades pré-capitalistas, “aparecem em todos os casos como suas próprias relações pessoais, e não estão disfarçadas sob a forma de relações sociais entre os produtos do trabalho”. [15]
Mas isto implica que o princípio da mecanização racional e da calculabilidade deve abranger todos os aspectos da vida. Os artigos de consumo não aparecem mais como produtos de um processo orgânico dentro de uma comunidade (como, por exemplo, em uma comunidade de aldeia). Eles aparecem agora, por um lado, como membros abstratos de uma espécie idêntica por definição a seus outros membros e, por outro lado, como objetos isolados cuja posse ou não posse depende de cálculos racionais. Somente quando toda a vida da sociedade é assim fragmentada nos atos isolados de troca de mercadorias é que o trabalhador “livre” pode vir à existência; ao mesmo tempo, seu destino torna-se o destino típico de toda a sociedade.
É claro que este isolamento e esta fragmentação é apenas aparente. O movimento de mercadorias no mercado, o nascimento de seu valor, em uma palavra, a verdadeira estrutura de todo cálculo racional não está meramente sujeito a leis rígidas, mas também pressupõe a ordenação rigorosa de tudo o que acontece. A atomização do indivíduo é, portanto, apenas o reflexo na consciência de que as “leis naturais” da produção capitalista foram estendidas para cobrir toda manifestação da vida em sociedade; que – pela primeira vez na história – toda a sociedade está sujeita, ou tende a estar sujeita, a um processo econômico unificado, e que o destino de cada membro da sociedade é determinado por leis unificadas. (Em contraste, as unidades orgânicas das sociedades pré-capitalistas organizaram seu metabolismo em grande parte em independência umas das outras).
Entretanto, se esta atomização é apenas uma ilusão, é uma ilusão necessária. Ou seja, o confronto imediato, prático e intelectual do indivíduo com a sociedade, a produção e reprodução imediata da vida – na qual para o indivíduo a estrutura de mercadorias de todas as “coisas” e sua obediência às “leis naturais” já existe em uma forma acabada, como algo imutavelmente dado – só poderia ocorrer na forma de atos racionais e isolados de troca entre proprietários isolados de mercadorias. Como enfatizado acima, o trabalhador também deve se apresentar como o “dono” de sua força de trabalho, como se fosse uma mercadoria. Sua situação específica é definida pelo fato de que sua força de trabalho é sua única posse. Seu destino é típico da sociedade como um todo, pois esta auto-objectificação, esta transformação de uma função humana em uma mercadoria revela em toda a sua estreiteza a função desumanizada e desumanizante da relação mercadoria.

2

Esta objetivação racional esconde acima de tudo o caráter imediato – qualitativo e material – das coisas como coisas. Quando os valores de uso aparecem universalmente como mercadorias, adquirem uma nova objetividade, uma nova substancialidade que não possuíam em uma era de troca episódica e que destrói sua substancialidade original e autêntica. Como observa Marx:
“A propriedade privada não só afasta a individualidade dos homens, mas também das coisas. O solo e a terra não têm nada a ver com o aluguel do solo, as máquinas não têm nada a ver com o lucro. Para o proprietário, terra e terra não significam nada além de terra arrendada; ele deixa sua terra aos inquilinos e recebe o aluguel – uma qualidade que a terra pode perder sem perder nenhuma de suas qualidades inerentes, como sua fertilidade; é uma qualidade cuja magnitude e existência depende das relações sociais que são criadas e abolidas sem qualquer intervenção do proprietário da terra. Da mesma forma, com a máquina”. [16]
Assim, mesmo o objeto individual que o homem enfrenta diretamente, seja como produtor ou consumidor, é distorcido em sua objetividade por seu caráter de mercadoria. Se isto pode acontecer, então é evidente que este processo será intensificado na proporção em que as relações que o homem estabelece com objetos como objetos do processo da vida são mediadas no curso de sua atividade social. Obviamente não é possível aqui fazer uma análise de toda a estrutura econômica do capitalismo. Deve ser suficiente ressaltar que o capitalismo moderno não se contenta em transformar as relações de produção de acordo com suas próprias necessidades. Ele também integra em seu próprio sistema aquelas formas de capitalismo primitivo que levaram a uma existência isolada nos tempos pré-capitalistas, divorciada da produção; ele as converte em membros do processo unificado do capitalismo radical de agora em diante. (Cf. o capital mercantil, o papel do dinheiro como um açambarcamento ou como capital financeiro, etc.)
Essas formas de capital estão objetivamente subordinadas, é verdade, ao processo de vida real do capitalismo, à extração de mais-valia no curso da produção. Elas devem, portanto, ser explicadas apenas em termos da natureza do próprio capitalismo industrial. Mas na mente das pessoas da sociedade burguesa eles constituem as formas puras, autênticas e não adulteradas de capital. Nelas as relações entre os homens que se escondem na relação imediata de mercadorias, assim como as relações entre os homens e os objetos que deveriam realmente satisfazer suas necessidades, desvaneceram-se ao ponto de não poderem ser reconhecidas nem mesmo percebidas.
Por esta mesma razão, a mente reificada passou a considerá-los como os verdadeiros representantes de sua existência societal. O caráter de mercadoria da mercadoria, o modo abstrato e quantitativo de cálculo se mostra aqui em sua forma mais pura: a mente reificada a vê necessariamente como a forma na qual sua própria imediatez autêntica se manifesta e – como consciência reificada – não tenta sequer transcendê-la. Pelo contrário, ela se preocupa em torná-la permanente, “aprofundando cientificamente” as leis em ação. Assim como o sistema capitalista continuamente produz e se reproduz economicamente em níveis cada vez mais elevados, a estrutura da reificação afunda progressivamente mais profundamente, mais fatalmente e de forma mais definitiva na consciência do homem. Marx frequentemente descreve esta potencialização da reificação de forma incisiva. Um exemplo deve ser suficiente aqui:
“No capital que vence juros, portanto, este fetiche automático, de auto-expansão de valor, gerador de dinheiro é trazido à tona em seu estado puro e, nesta forma, não tem mais as marcas de nascimento de sua origem. A relação social é consumada na relação de uma coisa, de dinheiro, com ela mesma. Em vez da transformação real do dinheiro em capital, vemos aqui apenas a forma sem conteúdo. … Ela se torna uma propriedade do dinheiro para gerar valor e render juros, por mais que seja um atributo das pereiras para suportar pêras. E o emprestador de dinheiro vende seu dinheiro como se fosse uma coisa que rendesse juros. Mas isso não é tudo. O capital que realmente funciona, como vimos, se apresenta de tal forma que parece render juros não como capital em funcionamento, mas como capital em si mesmo, como capital monetário. Isto, também, se torna distorcido. Enquanto os juros são apenas uma parte do lucro, ou seja, da mais-valia, que o capitalista funcional espreme do trabalhador, parece agora, ao contrário, como se os juros fossem o produto típico do capital, a matéria primordial, e o lucro, na forma de lucro da empresa, fosse um mero acessório e subproduto do processo de reprodução. Assim, obtemos uma forma fetiche de capital, e a concepção de capital fetiche. Em M-M’ temos a forma sem sentido do capital, a perversão e a objetivação das relações de produção em seu mais alto grau, a forma remunerada, a forma simples do capital, na qual antecede seu próprio processo de reprodução. É a capacidade do dinheiro, ou de uma mercadoria, de expandir seu próprio valor independentemente da reprodução – que é uma mistificação do capital em sua forma mais flagrante. Para a economia política vulgar, que procura representar o capital como fonte independente de valor, de criação de valor, esta forma é naturalmente uma verdadeira descoberta. uma forma na qual a fonte de lucro não é mais discernível, e na qual o resultado do processo capitalista de produção – divorciado do processo – adquire uma existência independente”. [17]
Assim como a teoria econômica do capitalismo permanece presa em seu imediatismo autocriado, a mesma coisa acontece com as tentativas burguesas de compreender o fenômeno ideológico da reificação. Mesmo os pensadores que não têm desejo de negar ou obscurecer sua existência e que são mais ou menos claros em suas próprias mentes sobre suas conseqüências humanamente destrutivas permanecem na superfície e não fazem nenhuma tentativa de avançar além de suas formas objetivamente mais derivadas, as formas mais distantes do processo real de vida do capitalismo, ou seja, as formas mais externas e vazias, para o fenômeno básico da própria reificação.
De fato, elas divorciam essas manifestações vazias de sua verdadeira fundação capitalista e as tornam independentes e permanentes, considerando-as como o modelo atemporal das relações humanas em geral. (Isto pode ser visto mais claramente no livro de Simmel A Filosofia do Dinheiro, um trabalho muito interessante e perspicaz em questões de detalhes). Eles não oferecem mais do que uma descrição deste “mundo encantado, pervertido, de curvas, no qual Monsieur Le Capital e Madame La Terre fazem suas caminhadas fantasmagóricas como personagens sociais e, ao mesmo tempo, como meras coisas”. [18] Mas eles não vão além de uma descrição e seu ‘aprofundamento’ do problema corre em círculos em torno das manifestações eternas da reificação.
O divórcio dos fenômenos de reificação de suas bases econômicas e do ponto de vista do qual somente eles podem ser compreendidos, é facilitado pelo fato de que o processo [capitalista] de transformação deve abraçar todas as manifestações da vida da sociedade para que as condições prévias para a completa auto-realização da produção capitalista possam ser cumpridas.
Assim, o capitalismo criou uma forma para o Estado e um sistema de direito correspondente às suas necessidades e que se harmoniza com sua própria estrutura. A semelhança estrutural é tão grande que nenhum historiador verdadeiramente perspicaz do capitalismo moderno poderia deixar de percebê-la. Max Weber, por exemplo, dá esta descrição das linhas básicas deste desenvolvimento: “Ambas são, ao contrário, bastante semelhantes em sua natureza fundamental. Vista sociologicamente, uma “preocupação de negócios” é o estado moderno; o mesmo vale para uma fábrica: e isto, precisamente, é o que é específico a ela historicamente. E, da mesma forma, as relações de poder em um negócio também são do mesmo tipo. A relativa independência do artesão (ou artesão caseiro), do camponês latifundiário, do proprietário de um benefício, do cavaleiro e do vassalo se baseava no fato de que ele próprio possuía as ferramentas, os suprimentos, os recursos financeiros ou as armas com a ajuda das quais cumpria sua função econômica, política ou militar e das quais vivia enquanto este dever estava sendo descartado. Da mesma forma, a dependência hierárquica do trabalhador, do escrivão, do assistente técnico, do assistente de um instituto acadêmico e do funcionário público e do soldado tem uma base comparável: isto é, que as ferramentas, os suprimentos e os recursos financeiros essenciais tanto para a preocupação empresarial como para a sobrevivência econômica estão nas mãos. num caso, do empresário e, no outro, do mestre político”. [19]
Ele completa este relato – muito pertinentemente – com uma análise da causa e das implicações sociais deste fenômeno:
“A preocupação capitalista moderna se baseia interiormente, sobretudo nos cálculos. É um sistema de justiça e uma administração cujo funcionamento pode ser calculado racionalmente, pelo menos em princípio, de acordo com leis gerais fixas, assim como o provável desempenho de uma máquina pode ser calculado. É tão pouco capaz de tolerar a distribuição da justiça de acordo com o senso de equidade do juiz em casos individuais ou qualquer outro meio ou princípios irracionais de administração da lei … quanto é capaz de suportar uma administração patriarcal que obedece aos ditames de seu próprio capricho, ou senso de misericórdia e, quanto ao resto, procede de acordo com uma tradição inviolável e sacrossanta, mas irracional. … O que é específico do capitalismo moderno como diferente das antigas formas de aquisição capitalista é que a organização estritamente racional do trabalho com base em tecnologia racional não surgiu em nenhum lugar dentro de sistemas políticos tão irracionalmente constituídos, nem poderia ter surgido. Para estas empresas modernas, com seu capital fixo e seus cálculos exatos, são muito sensíveis a irracionalidades legais e administrativas. Eles só poderiam vir a existir no estado burocrático com suas leis racionais onde … o juiz é mais ou menos uma máquina automática de distribuição de estatuto na qual você insere os arquivos junto com os custos e as cotas necessárias no topo, onde ele ejetará o julgamento junto com as razões mais ou menos convincentes para ele no fundo: isto é, onde o comportamento do juiz é, no geral, previsível”.
O processo que vemos aqui está intimamente relacionado tanto em sua motivação quanto em seus efeitos ao processo econômico descrito acima. Também aqui há uma brecha com os métodos empíricos e irracionais de administração e de dispensar justiça com base em tradições adaptadas, subjetivamente, às exigências dos homens em ação e, objetivamente, às do assunto concreto em questão. Surge uma sistematização racional de todos os estatutos que regulam a vida, o que representa, ou pelo menos tende a um sistema fechado aplicável a todos os casos possíveis e imagináveis. Se este sistema é alcançado de forma puramente lógica, como exercício de puro dogma jurídico ou interpretação da lei, ou se é dada ao juiz a tarefa de preencher as “lacunas” deixadas nas leis, é irrelevante para nossa tentativa de compreender a estrutura da realidade jurídica moderna. Em ambos os casos, o sistema jurídico é formalmente capaz de ser generalizado de modo a se relacionar com todas as situações possíveis na vida e é suscetível de previsão e cálculo. Mesmo o Direito Romano, que se aproxima mais destes desenvolvimentos, permanecendo, em termos modernos, dentro da estrutura dos padrões legais pré-capitalistas, não vai, neste aspecto, além do empírico, do concreto e do tradicional. As categorias puramente sistemáticas que eram necessárias antes que um sistema judiciário pudesse se tornar universalmente aplicável surgiram apenas nos tempos modernos[20].
Não é necessário mais explicações para perceber que a necessidade de sistematizar e abandonar o empirismo, a tradição e a dependência material era a necessidade de cálculos exatos. No entanto, esta mesma necessidade exige que o sistema jurídico enfrente os eventos individuais da existência social como algo permanentemente estabelecido e exatamente definido, ou seja, como um sistema rígido. Naturalmente, isto produz uma série ininterrupta de conflitos entre as forças incessantemente revolucionárias da economia capitalista e o rígido sistema jurídico. Mas isto só resulta em novas codificações; e apesar disto, o novo sistema é forçado a preservar a estrutura fixa e resistente a mudanças do antigo sistema.
Esta é a fonte da situação – aparentemente paradoxal – em que a “lei” das sociedades primitivas, que mal se alterou em centenas ou às vezes até milhares de anos, pode ser flexível e de caráter irracional, renovando-se a cada nova decisão legal, enquanto a lei moderna, apanhada na contínua turbulência da mudança, deve parecer rígida, estática e fixa. Mas o paradoxo se dissolve quando nos damos conta de que ele surge apenas porque a mesma situação foi considerada sob dois pontos de vista diferentes: por um lado, do historiador (que está ‘fora’ do processo real) e, por outro, do de alguém que experimenta os efeitos da ordem social em questão sobre sua consciência.
Com a ajuda desta percepção, podemos ver claramente como o antagonismo entre o artesanato tradicional e empírico e a fábrica científica e racional se repete em outra esfera de atividade. Em cada etapa de seu desenvolvimento, as técnicas incessantemente revolucionárias da produção moderna transformam uma face rígida e imóvel em direção ao produtor individual. Enquanto a produção artesanal tradicional, objetivamente relativamente estável, preserva na mente de seus praticantes individuais a aparência de algo flexível, algo que se renova constantemente, algo produzido pelos produtores.
No processo, testemunhamos, de forma esclarecedora, como também aqui a natureza contemplativa do homem sob o capitalismo faz sua aparição. Pois a essência do cálculo racional se baseia, em última instância, no reconhecimento e na inclusão nos cálculos da inevitável cadeia de causa e efeito em certos eventos – independentemente do “capricho” individual. Em conseqüência, a atividade do homem não vai além do cálculo correto do possível resultado da seqüência de eventos (as ‘leis’ das quais ele encontra ‘prontas’), e além da evasão adroit de ‘acidentes’ perturbadores por meio de dispositivos de proteção e medidas preventivas (que se baseiam, por sua vez, no reconhecimento e aplicação de leis semelhantes). Muitas vezes ele se limitará a elaborar os prováveis efeitos de tais “leis” sem fazer a tentativa de intervir no processo, trazendo outras “leis” à tona. (Como nos esquemas de seguro, etc.)
Quanto mais examinamos de perto esta situação e melhor somos capazes de fechar nossa mente para as lendas burguesas da “criatividade” dos expoentes da era capitalista, mais óbvio se torna que estamos testemunhando em todo comportamento deste tipo o análogo estrutural ao comportamento do trabalhador em relação à máquina que ele serve e observa, e cujas funções ele controla enquanto ele a contempla. O elemento “criativo” pode ser visto como dependendo, na melhor das hipóteses, se estas “leis” são aplicadas de forma – relativamente – independente ou totalmente subserviente. Ou seja, depende do grau em que a postura contemplativa é repudiada. A distinção entre um trabalhador diante de uma determinada máquina, o empresário diante de um determinado tipo de desenvolvimento mecânico, o tecnólogo diante do estado da ciência e a rentabilidade de sua aplicação à tecnologia, é puramente quantitativa; não implica diretamente em nenhuma diferença qualitativa na estrutura da consciência.
Somente neste contexto, o problema da burocracia moderna pode ser devidamente compreendido. A burocracia implica o ajuste do modo de vida, do modo de trabalho e, portanto, da consciência às premissas sócio-econômicas gerais da economia capitalista, semelhante ao que temos observado no caso do trabalhador, em particular das empresas. A padronização formal da justiça, do Estado, da função pública, etc., significa objetiva e factualmente uma redução comparável de todas as funções sociais a seus elementos, uma busca comparável das leis formais racionais desses sistemas parciais cuidadosamente segregados. Subjetivamente, o divórcio entre o trabalho e as capacidades e necessidades individuais do trabalhador produz efeitos comparáveis sobre a consciência. Isto resulta em uma divisão do trabalho desumana e padronizada, análoga à que encontramos na indústria no plano tecnológico e mecânico. [22]
Não se trata apenas do trabalho completamente mecânico e “sem sentido” dos escalões inferiores da burocracia que tem uma semelhança tão extraordinária com a operação de uma máquina e que, na verdade, muitas vezes a supera em esterilidade e uniformidade. Trata-se também, por um lado, da forma como objetivamente todas as questões são submetidas a um tratamento cada vez mais formal e padronizado e em que há um afastamento cada vez maior da essência qualitativa e material das “coisas” às quais a atividade burocrática pertence. Por outro lado, há uma intensificação ainda mais monstruosa da especialização unilateral que representa uma tal violação da humanidade do homem. O comentário de Marx sobre o trabalho de fábrica de que “o indivíduo, ele próprio dividido, se transforma no mecanismo automático de um trabalho parcial” e é, portanto, “aleijado até o ponto de anormalidade” é relevante também aqui. E torna-se ainda mais claro, quanto mais elevado, avançado e “intelectual” é o alcance exigido pela divisão do trabalho.
A divisão entre a força de trabalho do trabalhador e sua personalidade, sua metamorfose em uma coisa, um objeto que ele vende no mercado, também se repete aqui. Mas com a diferença de que nem toda faculdade mental é suprimida pela mecanização; apenas uma faculdade (ou complexo de faculdades) é desligada de toda a personalidade e colocada em oposição a ela, tornando-se uma coisa, uma mercadoria. Mas o fenômeno básico permanece o mesmo”, embora tanto o meio pelo qual a sociedade infunde tais capacidades e seu valor de troca material e “moral” sejam fundamentalmente diferentes da força de trabalho (não esquecendo, é claro, os muitos elos de ligação e nuances).
O tipo específico de “consciência” e imparcialidade burocrática, a inevitável sujeição total do burocrata individual a um sistema de relações entre as coisas a que está exposto, a idéia de que é precisamente sua “honra” e seu “senso de responsabilidade” que exigem essa total submissão [23], tudo isso aponta para o fato de que a divisão do trabalho que, no caso do Taylorismo, invadiu a psique, aqui invade o reino da ética. Longe de enfraquecer a estrutura reificada da consciência, isto na verdade a fortalece. Enquanto o destino do trabalhador ainda parecer ser um destino individual (como no caso do escravo na antiguidade), a vida das classes dirigentes ainda é livre para assumir formas bem diferentes. Só quando a ascensão do capitalismo foi uma economia unificada e, portanto, uma estrutura – formalmente – unificada de consciência que abraçou toda a sociedade, trazida à existência. Esta unidade se expressou no fato de que os problemas de consciência decorrentes do trabalho assalariado se repetiram na classe dominante de forma refinada e espiritualizada, mas, por esta mesma razão, de forma mais intensa. O “virtuoso” especializado, o vendedor de suas faculdades objetivadas e reificadas não se torna apenas o observador [passivo] da sociedade; ele também se torna uma atitude contemplativa em relação ao funcionamento de suas próprias faculdades objetivadas e reificadas. (Não é possível aqui nem mesmo delinear a forma pela qual a administração e o direito modernos assumem as características da fábrica, como notamos acima, e não as do artesanato). Este fenômeno pode ser visto em seu aspecto mais grotesco no jornalismo. Aqui é precisamente a própria subjetividade, o conhecimento, o temperamento e os poderes de expressão que são reduzidos a um mecanismo abstrato que funciona de forma autônoma e divorciado tanto da personalidade de seu “dono” quanto da natureza material e concreta do assunto em questão. A “falta de convicções” do jornalista, a prostituição de suas experiências e crenças é compreensível apenas como a da reificação capitalista. [24]
A transformação da relação de mercadorias em uma coisa de “objetividade fantasmagórica” não pode, portanto, contentar-se com a redução de todos os objetos para a gratificação das necessidades humanas às mercadorias. Ela imprime sua marca em toda a consciência do homem; suas qualidades e habilidades não são mais parte orgânica de sua personalidade, são coisas que ele pode ‘possuir’ ou ‘dispor’ como os vários objetos do mundo externo. E não há nenhuma forma natural na qual as relações humanas possam ser lançadas, nenhuma forma na qual o homem possa colocar em jogo suas ‘qualidades’ físicas e psíquicas sem que elas estejam cada vez mais sujeitas a este processo reificante. Basta pensar no casamento, e sem nos preocuparmos em apontar os desenvolvimentos do século XIX, podemos nos lembrar da forma como Kant, por exemplo, descreveu a situação com a franqueza ingenuamente cínica peculiar aos grandes pensadores.
“A comunidade sexual”, diz ele, “é o uso recíproco feito por uma pessoa dos órgãos e faculdades sexuais de outra … casamento … é a união de duas pessoas de sexos diferentes, com vistas à posse mútua dos atributos sexuais um do outro ao longo de suas vidas”. [25]
Esta racionalização do mundo parece estar completa, parece penetrar nas próprias profundezas da natureza física e psíquica do homem. Ela é limitada, no entanto, por seu próprio formalismo. Ou seja, a racionalização de aspectos isolados da vida resulta na criação de leis formais. Todas estas coisas se unem no que parece ao observador superficial para constituir um sistema unificado de “leis” gerais. Mas a desconsideração dos aspectos concretos do objeto destas leis, sobre os quais se baseia sua autoridade como leis, se faz sentir na incoerência do sistema de fato. Esta incoerência se torna particularmente flagrante em períodos de crise. Em tais momentos, podemos ver como a continuidade imediata entre dois sistemas parciais é interrompida e sua independência e conexão adventícia um com o outro é subitamente forçada à consciência de todos. É por esta razão que Engels é capaz de definir as ‘leis naturais’ da sociedade capitalista como as leis do acaso. [26]
Examinando mais de perto, a estrutura de uma crise é vista como não mais do que um aumento do grau e intensidade da vida cotidiana da sociedade burguesa. Em sua realidade impensada e mundana, a vida parece firmemente mantida unida por “leis naturais”; no entanto, ela pode experimentar um deslocamento repentino porque os laços que unem seus vários elementos e sistemas parciais são um caso casual, mesmo em seu nível mais normal. Assim, o fingimento de que a sociedade é regulada por leis “eternas, de ferro” que se ramificam em diferentes leis especiais aplicáveis a áreas particulares é finalmente revelado pelo que é: um fingimento. A verdadeira estrutura da sociedade aparece mais nas leis parciais independentes, racionalizadas e formais, cujas ligações entre si são necessariamente puramente formais (ou seja, sua interdependência formal pode ser formalmente sistematizada), enquanto que, no que diz respeito às realidades concretas, elas só podem estabelecer conexões fortuitas.
Uma inspeção mais atenta permite descobrir este tipo de conexão, mesmo em fenômenos puramente econômicos. Assim, Marx ressalta – e os casos aqui citados são destinados apenas como uma indicação dos fatores metodológicos envolvidos, e não como um tratamento substantivo dos problemas em si – que “as condições de exploração direta [do trabalhador], e as de realização de mais-valia, não são idênticas”. Elas divergem não apenas no lugar e no tempo, mas também logicamente”. [27] Assim, existe “uma conexão mais acidental do que necessária entre a quantidade total de trabalho social aplicado a um artigo social” e “o volume pelo qual a sociedade procura satisfazer a carência gratificada pelo artigo em questão”. [28]
Estas não são mais do que instâncias aleatórias. É evidente que toda a estrutura da produção capitalista repousa sobre a interação entre uma necessidade sujeita a leis rigorosas em todos os fenômenos isolados e a relativa irracionalidade do processo total. “A divisão do trabalho dentro da oficina implica a autoridade indiscutível do capitalista sobre os homens, que são apenas partes de um mecanismo que lhe pertence. A divisão do trabalho dentro da sociedade coloca em contato produtores independentes de mercadorias que não reconhecem outra autoridade que a da concorrência, da coerção exercida por pressão de seus interesses mútuos”. [29]
O processo capitalista de racionalização baseado em cálculos econômicos privados exige que toda manifestação da vida exiba essa mesma interação entre detalhes sujeitos a leis e uma totalidade governada pelo acaso. Isso pressupõe uma sociedade tão estruturada. Ela produz e reproduz esta estrutura na medida em que toma posse da sociedade. Isto já tem seu fundamento na natureza do cálculo especulativo, ou seja, a prática econômica dos proprietários de mercadorias na fase em que a troca de mercadorias se tornou universal. A competição entre os diferentes proprietários de commodities não seria viável se houvesse um modo de funcionamento exato, racional e sistemático para que toda a sociedade correspondesse à racionalidade de fenômenos isolados. Para que um cálculo racional seja possível, o proprietário da mercadoria deve estar de posse das leis que regulamentam cada detalhe de sua produção. As chances de exploração, as leis do “mercado” também devem ser racionais no sentido de que devem ser calculáveis de acordo com as leis da probabilidade. Mas não devem ser governadas por uma lei no sentido de que “leis” governam fenômenos individuais; em nenhuma circunstância devem ser organizadas racionalmente através e através. Isto não significa, é claro, que não pode haver “lei” governando o todo. Mas tal ‘lei’ teria que ser o produto ‘inconsciente’ da atividade dos diferentes proprietários de mercadorias agindo independentemente uns dos outros, ou seja, uma lei de ‘coincidências’ que interagem mutuamente, em vez de uma organização verdadeiramente racional. Além disso, tal lei não deve se impor apenas apesar dos desejos dos indivíduos, ela pode até mesmo não ser completa e adequadamente conhecida. Pois o conhecimento completo do todo garantiria ao conhecedor um monopólio que equivaleria à abolição virtual da economia capitalista.
Esta irracionalidade – esta altamente problemática – ‘sistematização’ do todo que diverge, qualitativa e em princípio das leis que regulam as partes, é mais do que apenas um postulado, um pressuposto essencial para o funcionamento de uma economia capitalista. É, ao mesmo tempo, o produto da divisão capitalista do trabalho. Já foi salientado que a divisão do trabalho interrompe todo processo de trabalho e vida organicamente unificado e o decompõe em seus componentes. Isto permite que as funções parciais artificialmente isoladas sejam desempenhadas da maneira mais racional por “especialistas” que são especialmente adaptados mental e fisicamente para a finalidade. Isto tem o efeito de tornar estas funções parciais autônomas e assim elas tendem a se desenvolver através de seu próprio impulso e de acordo com suas próprias leis especiais, independentemente das outras funções parciais da sociedade (ou da parte da sociedade à qual pertencem).
medida que a divisão do trabalho se torna mais pronunciada e mais racional, esta tendência naturalmente aumenta em proporção. Quanto mais desenvolvida ela é, mais poderosas se tornam as reivindicações de status e os interesses profissionais dos “especialistas”, que são as encarnações vivas de tais tendências. E este movimento centrífugo não se limita a aspectos de um determinado setor. Está ainda mais em evidência quando consideramos as grandes esferas de atividade criadas pela divisão do trabalho. Engels descreve este processo no que diz respeito à relação entre economia e leis: “Da mesma forma com o direito. Assim que a nova divisão do trabalho que cria advogados profissionais se torna necessária, abre-se outra esfera nova e independente que, por toda sua dependência essencial da produção e do comércio, ainda tem uma capacidade especial de reagir a essas esferas. Em um estado moderno, o direito não só deve corresponder à condição econômica geral e ser sua expressão, mas também deve ser uma expressão internamente coerente que, devido às contradições internas, não se reduza a nada. E para conseguir isso, o fiel reflexo das condições econômicas sofre cada vez mais. … [30] Não é necessário complementá-lo com exemplos da consanguinidade e dos conflitos interdepartamentais do serviço civil (considere a independência do aparelho militar em relação à administração civil), ou das faculdades acadêmicas, etc.

3

A especialização das habilidades leva à destruição de cada imagem do todo. E como, apesar disso, a necessidade de compreender o todo – pelo menos cognitivamente – não pode se extinguir, descobrimos que a ciência, que também se baseia na especialização e, portanto, é apanhada no mesmo imediatismo, é criticada por ter dilacerado o mundo real em pedaços e ter perdido sua visão do todo. Em resposta às alegações de que “os vários fatores não são tratados como um todo”, Marx retorna que esta crítica é nivelada “como se fossem os livros-texto que impressionam esta separação sobre a vida e não a vida sobre os livros-texto”. [31] Mesmo que esta crítica mereça refutação em sua forma ingênua, ela se torna compreensível quando olhamos para um momento do exterior, ou seja, de um ponto de vista diferente do de uma consciência reificada, para a atividade da ciência moderna que é necessária tanto sociológica quanto metodologicamente e por essa razão “compreensível”. Tal olhar revelará (sem constituir uma ‘crítica’) que quanto mais intrincada uma ciência moderna se tornar e quanto melhor ela se compreender metodologicamente, mais resolutamente voltará as costas aos problemas ontológicos de sua própria esfera de influência e os eliminará do reino, onde alcançou alguma perspicácia. Quanto mais desenvolvida ela se tornar e mais científica, mais se tornará um sistema formalmente fechado de leis parciais. Descobrirá então que o mundo está além de seus limites, e em particular a base material que é sua tarefa entender, sua própria realidade concreta subjacente está, metodologicamente e em princípio, além de seu alcance.
Marx resumiu com precisão esta situação com referência à economia quando declarou que “o valor de uso como tal está fora da esfera de investigação da economia política”. [32] Seria um erro supor que certos dispositivos analíticos – como os encontrados na “Teoria da Utilidade Marginal” – poderiam mostrar o caminho para sair deste impasse. É possível deixar de lado as leis objetivas que regem a produção e o movimento de mercadorias que regulam o mercado e os modos de comportamento ‘subjetivos’ sobre ele e fazer a tentativa de partir de um comportamento ‘subjetivo’ no mercado. Mas isto simplesmente desloca a questão da questão principal para fases cada vez mais derivadas e reificadas sem ,,negar o formalismo do método e a eliminação desde o início do material concreto que lhe está subjacente. O ato formal de troca que constitui o fato básico para a teoria da utilidade marginal também suprime o valor de uso como valor de uso e estabelece uma relação de igualdade concreta entre objetos concretamente desiguais e de fato incomparáveis. É isto que cria o impasse.
Assim, o tema da troca é tão abstrato, formal e reificado quanto seu objeto. Os limites deste método abstrato e formal são revelados no fato de que seu objetivo escolhido é um sistema abstrato de ‘leis’ que se concentra na teoria da utilidade marginal, tanto quanto a economia clássica havia feito. Mas a abstração formal destas ‘leis’ transforma a economia em um sistema parcial fechado. E isto, por sua vez, é incapaz de penetrar em seu próprio substrato material, nem pode avançar a partir daí para uma compreensão da sociedade em sua totalidade e, portanto, é obrigado a ver esse substrato como um “dado” imutável e eterno. A ciência é assim impedida de compreender o desenvolvimento e o desaparecimento, o caráter social de sua própria base material, nada menos que a gama de atitudes possíveis em relação a ela e a natureza de seu próprio sistema formal.
Aqui, mais uma vez, podemos observar claramente a interação estreita entre uma classe e o método científico que surge da tentativa de conceituar o caráter social dessa classe, juntamente com suas leis e necessidades. Tem sido frequentemente apontado nestas páginas e em outros lugares – que o problema que forma a última barreira ao pensamento econômico da burguesia é a crise. Se agora – na plena consciência de nossa própria unilateralidade – considerarmos esta questão de um ponto de vista puramente metodológico, vemos que é o próprio sucesso com o qual a economia é totalmente racionalizada e transformada em um sistema de “leis” formais abstratas e orientadas matematicamente que cria a barreira metodológica para a compreensão do fenômeno da crise. Em momentos de crise, a existência qualitativa das “coisas” que levam suas vidas além do âmbito da economia como coisas mal compreendidas e negligenciadas – em si mesmas, como valores de uso – torna-se de repente o fator decisivo. (De repente, isto é, para o pensamento reificado, racional.) Ou melhor: estas “leis” não funcionam e a mente reificada é incapaz de perceber um padrão neste “caos”.
Esta falha é característica não apenas da economia clássica (que considerava as crises como perturbações ‘passageiras’, ‘acidentais’), mas da economia burguesa em toto. A incompreensibilidade e irracionalidade das crises é de fato uma consequência da situação de classe e dos interesses da burguesia, mas decorre igualmente de sua abordagem da economia. (Não há necessidade de explicar claramente o fato de que para nós ambos são meramente aspectos de uma mesma unidade dialética). Esta consequência segue com tal inevitabilidade que Tugan-Baranovsky, por exemplo, tenta, em sua teoria, desenhar
as conclusões necessárias de um século de crises, excluindo totalmente o consumo da economia e fundando uma economia “pura” baseada apenas na produção. A fonte das crises (cuja existência não pode ser negada) é então encontrada em incongruências entre os vários elementos da produção, ou seja, em fatores puramente quantitativos. Hilferding coloca seu dedo na falácia subjacente a todas essas explicações:
“Eles operam somente com conceitos econômicos como capital, lucro, acumulação, etc., e acreditam que possuem a solução para o problema quando descobriram as relações quantitativas com base nas quais é possível uma reprodução simples e ampliada, ou então há distúrbios. Eles ignoram o fato de que existem condições qualitativas ligadas a estas relações quantitativas, que não se trata apenas de unidades de valor que podem ser facilmente comparadas umas com as outras, mas também de valores de uso de tipo definido que devem cumprir uma função definida na produção e no consumo. Além disso, elas desconhecem o fato de que na análise do processo de reprodução está envolvido mais do que apenas aspectos do capital em geral, de modo que não basta dizer que um excesso ou um déficit de capital industrial pode ser “equilibrado” por uma quantia apropriada de capital monetário. Também não se trata de capital fixo ou circulante, mas sim de máquinas, matérias-primas, força de trabalho de um tipo bastante definido (tecnicamente definido), se quisermos evitar interrupções”. [33]
Marx frequentemente demonstrou de forma convincente como as garras da economia burguesa são inadequadas para a tarefa de explicar o verdadeiro movimento da atividade econômica no toto. Ele deixou claro que esta limitação reside na falha metodologicamente inevitável para compreender o valor de uso e o consumo real.
“Dentro de certos limites, o processo de reprodução pode ocorrer no mesmo ou em uma escala maior, mesmo quando as mercadorias expulsas dele não tenham realmente entrado no consumo individual ou produtivo. O consumo de mercadorias não está incluído no ciclo do capital do qual elas se originaram. Por exemplo, assim que o fio é vendido, o ciclo do valor do capital representado pelo fio pode começar de novo, independentemente do que possa vir a ser o fio vendido. Desde que o produto seja vendido, tudo está tomando seu curso regular do ponto de vista do produtor capitalista. O ciclo do valor do capital com o qual ele é identificado não é interrompido. E se este processo for expandido – o que inclui o aumento do consumo produtivo dos meios de produção – esta reprodução do capital pode ser acompanhada pelo aumento do consumo individual (daí a demanda) por parte dos trabalhadores, uma vez que este processo é iniciado e realizado pelo consumo produtivo. Assim, a produção de mais-valia, e com ela o consumo individual do capitalista, pode aumentar, todo o processo de reprodução pode estar em condições florescentes, e ainda assim uma grande parte das mercadorias pode ter entrado no consumo apenas na aparência, enquanto na realidade elas podem ainda permanecer não vendidas nas mãos dos revendedores, podem na verdade ainda estar deitadas no mercado”. [34]
Deve ser enfatizado que esta incapacidade de penetrar no verdadeiro substrato material da ciência não é culpa de indivíduos. É antes algo que se torna tanto mais aparente quanto mais a ciência avançou e mais consistentemente ela funciona do ponto de vista de suas próprias premissas. Portanto, não é por acaso, como Rosa Luxemburgo demonstrou de forma convincente [35], que a grande, ainda que muitas vezes também primitiva, defeituosa e inexata visão sinóptica da vida econômica a ser encontrada no “Tableau Economique” de Quesnay, desaparece progressivamente à medida que o – formal – processo de conceitualização se torna cada vez mais exato no curso de seu desenvolvimento de Adam Smith a Ricardo. Para Ricardo, o processo de reprodução total do capital (onde este problema não pode ser evitado) não é mais uma questão central.
Na jurisprudência, esta situação emerge com ainda maior clareza e simplicidade – porque há uma reificação mais consciente no trabalho. Quanto mais não seja porque a questão de se o conteúdo qualitativo pode ser compreendido por meio de uma abordagem racional, o cálculo não é mais visto em termos de uma rivalidade entre dois princípios dentro da mesma esfera (como era o caso do valor de uso e do valor de troca em economia), mas sim, desde o início, como uma questão de forma versus conteúdo. O conflito em torno da lei natural, e todo o período revolucionário da burguesia foi baseado no pressuposto de que a igualdade formal e a universalidade da lei (e, portanto, sua racionalidade) foi capaz de determinar ao mesmo tempo seu conteúdo. Isto foi expresso no assalto ao variado e pitoresco medley de privilégios que remontam à Idade Média e também no ataque ao Direito Divino dos Reis. A classe burguesa revolucionária recusou-se a admitir que uma relação jurídica tinha um fundamento válido apenas porque existia de fato. “Queimem suas leis e façam novas leis”! Voltaire aconselhou: “De onde podem ser obtidas novas leis? Da Razão!” [36]
A guerra travada contra a burguesia revolucionária, digamos, na época da Revolução Francesa, foi dominada de tal forma por esta idéia que era inevitável que a lei natural da burguesia só pudesse ser combatida por outra lei natural (ver Burke e também Stahl). Somente após a burguesia ter obtido pelo menos uma vitória parcial é que uma visão “crítica” e uma visão “histórica” começaram a surgir em ambos os campos. Sua essência pode ser resumida como a crença de que o conteúdo da lei é algo puramente factual e, portanto, não deve ser compreendido pelas categorias formais da jurisprudência. Dos princípios do direito natural, o único a sobreviver foi a idéia da continuidade ininterrupta do sistema formal do direito; significativamente, Bergbohm usa uma imagem emprestada da física, a de um “vazio jurídico”, para descrever tudo o que não está regulamentado pela lei. [37]
Entretanto, a coesão dessas leis é puramente formal: o que elas expressam, “o conteúdo das instituições jurídicas nunca é de caráter jurídico, mas sempre político e econômico”. [38] Com isso, a campanha primitiva e cinicamente céptica contra a lei natural que foi lançada pelo ‘Kantian’ Hugo no final do século XVIII, adquiriu um status ‘científico’. Hugo estabeleceu a base jurídica da escravidão, entre outras coisas, argumentando que ela “tinha sido a lei da terra por milhares de anos e foi reconhecida por milhões de pessoas cultas”. [39] Nesta franqueza ingenuamente cínica, o padrão que deve se tornar cada vez mais característico da lei na sociedade burguesa se revela claramente. Quando Jellinek descreve o conteúdo do direito como meta-jurístico, quando juristas ‘críticos’ localizam o estudo do conteúdo do direito na história, sociologia e política, o que eles estão fazendo é, em última análise, exatamente o que Hugo havia exigido: eles estão abandonando sistematicamente a tentativa de fundamentar o direito na razão e de dar-lhe um conteúdo racional; o direito deve doravante ser considerado como um cálculo formal com a ajuda do qual as conseqüências legais de determinadas ações (rebus sic stantibus) podem ser determinadas o mais exatamente possível.
Entretanto, esta visão transforma o processo pelo qual a lei nasce e passa a ser algo tão incompreensível para o jurista quanto as crises tinham sido para o economista político. Com relação às origens do direito, o perspicaz jurista “crítico” Kelsen observa: “É o grande mistério do direito e do estado que se consome com a promulgação de leis e por esta razão pode ser permitido empregar imagens inadequadas para elucidar sua natureza”. [40] Ou, em outras palavras: “É sintomático da natureza da lei que uma norma pode ser legítima mesmo que suas origens sejam iníquas. Essa é outra forma de dizer que a origem legítima de uma lei não pode ser escrita no conceito de lei como uma de suas condições”. [41] Este esclarecimento epistemológico também poderia ser um esclarecimento factual e, portanto, poderia levar a um avanço no conhecimento. Para conseguir isso, porém, as outras disciplinas para as quais o problema das origens do direito tinha sido desviado teriam realmente que propor uma solução genuína para ele. Mas também seria essencial realmente penetrar na natureza de um sistema jurídico que serve puramente como um meio de calcular os efeitos das ações e de impor racionalmente modos de ação relevantes para uma determinada classe. Nesse caso, o substrato real e material da lei se tornaria visível e compreensível de uma só vez. Mas nenhuma das condições pode ser cumprida. A lei mantém sua estreita relação com os “valores eternos”. Isto dá origem, na forma de uma filosofia do direito, a uma reedição empobrecida e formalista da lei natural (Stammler). Enquanto isso, a verdadeira base para o desenvolvimento do direito, uma mudança nas relações de poder entre as classes, torna-se confusa e desaparece nas ciências que a estudam, ciências que – em conformidade com os modos de pensamento atuais na sociedade burguesa – geram os mesmos problemas de transcender seu substrato material como vimos na jurisprudência e na economia.
A maneira pela qual esta transcendência é concebida mostra como foi vã a esperança de que uma disciplina abrangente, como a filosofia, pudesse ainda alcançar aquele conhecimento geral ao qual as ciências particulares renunciaram tão conspicuamente, afastando-se do substrato material de seu aparato conceitual. Tal síntese só seria possível se a filosofia fosse capaz de mudar radicalmente sua abordagem e concentrar-se na totalidade material concreta do que pode e deve ser conhecido. Somente então ela seria capaz de romper as barreiras erguidas por um formalismo que degenerou em um estado de completa fragmentação. Mas isto pressuporia uma consciência das causas, da gênese e da necessidade deste formalismo; além disso, não seria suficiente unir mecanicamente as ciências especiais: elas teriam que ser transformadas interiormente por um método filosófico sintetizador interiormente. É evidente que a filosofia da sociedade burguesa é incapaz de fazê-lo. Não que o desejo de síntese esteja ausente; nem pode ser mantido que as melhores pessoas tenham acolhido de braços abertos uma existência mecânica hostil à vida e um formalismo científico estranho a ela. Mas uma mudança radical de perspectiva não é viável no solo da sociedade burguesa. A filosofia pode tentar reunir todo o conhecimento de forma enciclopédica (ver Wundt). Ou pode questionar radicalmente o valor do conhecimento formal para uma “vida viva” (ver filosofias irracionalistas de Hamann a Bergson). Mas estas tendências episódicas estão de um lado da principal tradição filosófica. Esta última reconhece como dados e necessários os resultados e realizações das ciências especiais e atribui à filosofia a tarefa de exibir e justificar os fundamentos para considerar como válidos os conceitos assim construídos.
Assim, a filosofia está na mesma relação com as ciências especiais que elas estão em relação à realidade empírica. A conceituação formalista das ciências especiais torna-se para a filosofia um substrato imutavelmente dado e isto sinaliza a renúncia final e desesperada de toda tentativa de lançar luz sobre a reificação que está na raiz deste formalismo. O mundo reificado aparece a partir de agora bastante definitivo – e em filosofia, sob o holofote da “crítica” ele se potencializa ainda mais – como o único mundo possível, o único mundo conceitualmente acessível e compreensível para nós, humanos. Quer isto dê origem a êxtase, resignação ou desespero, quer procuremos um caminho que nos conduza à “vida” através de experiências místicas irracionais, isto não fará absolutamente nada para modificar a situação como ela é de fato.
Ao limitar-se ao estudo das “condições possíveis” da validade das formas nas quais sua existência subjacente é manifestada, o pensamento burguês moderno barra seu próprio caminho para uma visão clara dos problemas relativos ao nascimento e à morte dessas formas, e de sua verdadeira essência e substrato. Sua perspicácia se encontra cada vez mais na situação daquele lendário “crítico” na Índia que se viu confrontado com a antiga história segundo a qual o mundo repousa sobre um elefante. Ele desencadeou a pergunta “crítica”: sobre o que descansa o elefante? Ao receber a resposta de que o elefante está de pé sobre uma tartaruga “crítica”, declarou-se satisfeito. É óbvio que mesmo que ele tivesse continuado a pressionar aparentemente (perguntas “críticas”, ele só poderia ter provocado um terceiro animal milagroso. Ele não teria sido capaz de descobrir a solução para a verdadeira questão.

NOTAS SOBRE A SEÇÃO I

1 A Contribution to the Critique of Political Economy, p. 53.
2 Capital III, p. 324.
3 Capital III, p. 810.
4 Capital I, p. 72. On this antagonism cf. the purely economic distinction between the exchange of goods in terms of their value and the exchange in terms of their cost of production. Capital III, p. 174.
5 Capital I, p. 170.
6 Cf. Capital 1, pp. 322, 345.
7 This whole process is described systematically and historically in Capital I. The facts themselves can also be found in the writings of bourgeois economists like Bücher, Sombart, A. Weber and Gottl among others – although for the most part they are not seen in connection with the problem of reification.
8 Capital I, p. 384.
9 Capital I, p. 355 (note).
10 That this should appear so is fully justified from the point of view of the individual consciousness. As far as class is concerned we would point out that this subjugation is the product of a lengthy struggle which enters upon a new stage with the organisation of the proletariat into a class. but on a higher plane and with different weapons.
11 Capital 1, pp. 374-6, 423-4, 460, etc. It goes without saying that this ‘contemplation’ can be more demanding and demoralising than ‘active’ labour. But we cannot discuss this further here.
12 The Poverty of Philosophy, pp. 58-9.
13 Capital I, p. 344.
14 CL Gottl: Wirtschaft und Technik, Grundrisse der Sozialökonomik II, 234 et seq.
15 Capital I, p. 77.
16 This refers above all to capitalist private property. Der heilige Max. Dokumente des Sozialismus 1II, 363. Marx goes on to make a number of very fine observations about the effects of reification upon language. A philological study from the standpoint of historical materialism could profitably begin here.
17 Capital III, pp. 384-5.
18 Ibid., p. 809.
19 Gesammelte politische Schriften, Munich, 1921, pp. 140-2. Weber’s reference to the development of English law has no bearing on our problem. On the gradual ascendancy of the principle of economic calculation, see also A. Weber, Standort der Industrien, especially p. 216.
20 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 491.
21 Ibid., p. 129.
22 If we do not emphasise the class character of the state in this context, this is because our aim is to understand reification as a general phenomenon constitutive of the whole of bourgeois society. But for this the question of class would have to begin with the machine. On this point see Section Ill.
23 Cf. Max Weber, Politische Schriften, p. 154.
24 Cf. the essay by A. Fogarasi in Kommunismus, jg. II, No. 25126.
25 Die Metaphysik der Sitten, Pt. I, § 24.
26 The Origin of the Family, in S. W. II, p. 293.
27 Capital III, p. 239.
28 Ibid., p. 183.
29 Capital I, p. 356.
30 Letter to Conrad Schmidt in S.W. II, pp. 447-8.
31 A Contribution to the Critique of Political Economy, p. 276.
32 Ibid., p. 2 1.
33 Finanzkapital, 2nd edition, pp. 378-9.
34 Capital II, pp. 75-6.
35 Die Akkumulation des Kapitals, Ist edition, pp. 78-9. It would be a fascinating task to work out the links between this process and the development of the great rationalist systems.
36 Quoted by Bergbohm, Jurisprudenz und Rechtsphilosphie, p. 170.
37 Ibid., p. 375.
38 Preuss, Zur Methode der juristischen Begriffsbildung. In Schmollers jahrbuch, 1900, p. 370.
39 Lehrbuch des Naturrechts, Berlin, 1799, § 141. Marx’s polemic against Hugo (Nachlass 1, pp. 268 et seq.) is still on Hegelian lines.
40 Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, p. 411 (my italics).
41 F. Somlo, juristiche Grundlehre, p. 117.

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