RECIFE, Pernambuco (Brasil) — Na semana passada, os jornais daqui noticiaram que o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região condenou o ex-prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker Corte Real, e sua esposa, Sari Mariana Costa Gaspar Corte Real, a pagar R$ 2,01 milhões (aproximadamente US$ 400 mil) em danos à família de Miguel Otávio, que faleceu após cair do 9º andar do luxuoso prédio onde morava o casal, e a mãe da criança trabalhava como empregada doméstica. A sentença, da qual ainda caberá recurso pelo casal, veio mais de três anos após a morte da criança. Escrevi sobre esse caso, mais um crime contra negros no Brasil, há três anos (Vermelho, 5 de junho de 2020), como segue. Infelizmente, os ecos deste caso podem ser encontrados não apenas em todo o Brasil, mas em todos os lugares tocados pela história da escravidão e da exploração.

O caso do pequeno Miguel, filho da empregada doméstica Mirtes, revela o horror da injustiça de classe no Brasil – e neste crime, o costume atual de matar negros entre os brasileiros.

Não estou exagerando. Não pode haver exagero no rosto de uma criança negra, vista com desprezo, que caiu do nono andar ao chão. Não podemos nem falar dessa morte como uma tragédia, tal é a onipresença de como a vida negra é anulada, desde as favelas do Brasil onde são caçados, até os empregados domésticos que trabalham e servem sob “amigos” (leia-se: falso ) relacionamentos. O caso de Miguel Otávio e Mirtes Renata, filho e mãe, é o próprio modelo de um crime que fica impune – ou certamente não é punido com severidade suficiente – um crime sangrento do qual podemos tirar lições antes, durante e depois de sua ocorrência.

Na primeira lição, vemos a confortável felicidade da relação entre patrões e trabalhadores domésticos. Ou melhor, diria, a felicidade confortável dos senhores que a traduzem na felicidade das suas criadas. “Eles não têm do que reclamar. Eu dou tudo a eles”, dizem eles. “Aqui em casa a empregada é membro da família”, vangloriam-se descaradamente.

O curioso é que, nessas palavras gentis, são quase sinceras. Eles querem dizer, sem ousar expressá-lo, que suas garotinhas negras recebem muito mais do que recebem de outras caricaturas de crueldade. E, de fato, em suas casas as empregadas comem – “e como comem!” o mestre observa. Comem como animais, o que significa que têm uma fome secular que nunca foi satisfeita. As empregadas dormem! Imagine! Eles até dormem? “Eles dormem melhor do que eu, coitado porque tenho insônia.” Isso é rico. Portanto, neste capítulo, nesta lição, vemos com mais clareza quem obteve insights sobre a experiência do sofrimento.

Certa vez, um taxista me disse, do nada, a propósito: “Consigo reconhecer, na rua, só de olhar para eles, quem é e quem não é empregada doméstica”. “Como assim?” Perguntei. Ele disse: “No ponto de ônibus eles sempre estão com o cabelo molhado e uma bolsinha. Você sabe porque? No final do dia, tomam banho e levam para casa as sobras do almoço do patrão. Até hoje não perdi nenhum. Eu sei porque minha esposa é faxineira. Ela é explorada! Ele continuou. “Muitas vezes, às 7 horas da noite, na hora de sair de casa, a patroa chega e pede que ela prepare o jantar do patrão. É quando ela não aparece com alguns amigos para beber. Então minha esposa passa de faxineira a cozinheira. Ela faz tudo pela senhora.

No caso de Mirtes Renata Santana de Souza e sua amante Sari Corte Real, o carinho e a boa amizade mereceram até uma casa de praia – em Tamandaré, litoral sul de Pernambuco, onde o mestre Sérgio Hacker Corte Real é prefeito. Você acompanhará Sua Excelência? Significado: Para fugir do surto de coronavírus no Recife, a patroa foi até a casa de praia e levou as empregadas e o filho pequeno Miguel. Observe como se reproduz a Casa Grande da escravidão dos bons velhos tempos. Os patrões “empregavam” em sua casa uma família inteira: Mirtes, sua mãe e Miguel. Além do carinho, também receberam o coronavírus, pois o prefeito adoeceu e foi curado. Enquanto isso, as empregadas contaminadas tiveram que continuar trabalhando, pois a limpeza e a cozinha não podem parar. Madame iria trabalhar como uma mulher negra? Isso é tudo que ela precisava! Para o inferno com a civilização!

A segunda lição, com sangue. Minutos antes de Miguel cair, Madame estava pintando as unhas em casa. Ela havia ficado com o filho pequeno de sua empregada, Mirtes, que havia saído para passear com o cachorro de sua patroa. A criança ficou brincando com a filha de Madame. (Lembra-se dos pequenos escravos negros que distraíam os filhos dos fazendeiros?) Mas a desgraça de Miguel era que ele amava demais a mãe. Quando ela saiu, ele começou a chorar, implorando por seu abrigo e colo.

Mas por que o menino, além de amar a mãe, de repente sentiu tanta falta do carinho dela? Só quem sente e já sentiu essa falta saberia dizer. O fato é que o menino, teimoso, rebelde, “cheio de desejos” – como se não fosse filho de uma mulher negra – irritava tanto a patroa que ela não teve escolha senão deixá-lo entregue à sua sorte. Oh, destino, oh, fortuna, oh, destino! Em outras palavras: você quer sua mãe? Prossiga. Boa sorte. No vídeo, a amante parece estar levando o condenado ao seu destino de menino negro. Enquanto ela retorna para suas lindas unhas.

De repente, um baque, um pequeno estrondo. Quando os ossos atingem o solo de uma grande altura, eles soam como bombas. Já presenciei o som de um homem que se jogou do alto do Edifício Holiday em Boa Viagem, Recife. Mas nunca um garotinho. É por isso que dou-lhe uma pequena pancada pelo barulho dos seus ossos partidos.

E assim chegamos à terceira aula didática de um crime de classe em Pernambuco. Na primeira entrevista, após o “acidente”, um dos investigadores, ao ser questionado se havia pessoas no apartamento onde trabalhava a mãe da criança, respondeu, um tanto contrariado: “Isso ainda depende da investigação”. Pergunta simples, resposta oculta. “Vamos esperar para ver o que o chefe diz”, seria a melhor compreensão do que o investigador respondeu.

O caso foi então tratado como uma tragédia, uma fatalidade ou o destino de meninos negros que vão para onde não pertencem. Depois vêm os depoimentos dos familiares da vítima de cinco anos, que afirmam: “A patroa e a manicure estavam no apartamento”.

Diante do clamor, o diabo tomou um rumo inesperado. Eles tiveram que investigar mais a fundo, até a inexplicável porta da família da elite. É verdade que o chefe foi responsabilizado pelo crime culposo. Quem não conhece o mundo do direito pode pensar que o crime culposo é o crime da culpa. Mas não, é um crime menor, porque o autor do crime não pretendia matar. Ela matou sem querer, por acidente, “um ato do destino”, como disse o inspetor de polícia em entrevista. Então a Sra. Sari pagou uma fiança de 20 mil reais (cerca de US$ 4 mil) e foi embora.

Mas a justiça para o povo do Brasil exige mais investigações e menos mortes fatais. Em vez de tristeza e olhares de pena, todos querem saber: o que disse a manicure, testemunha das contorções da criança e das palavras da patroa, antes de levar Miguel para o cadafalso? Se a manicure foi ouvida, o que ela disse? Além do mais, uma psicóloga foi chamada para entrevistar a filhinha da patroa que brincava com o menino no apartamento minutos antes da queda? São caminhos que poderiam ser percorridos, antes da classificação menor do crime da patroa, que poderia ser punido como crime de dolo, porque ela se arriscou a se desfazer de uma criança, colocando-a em um elevador para sua última viagem.

[Video documentation shows that she put Miguel into the elevator, pushed or indicated a button presumably to the first floor, and then exited, leaving Miguel alone. Miguel proceeded to push other buttons, including the alarm, and wound up on the 9th floor, where he exited, found an unprotected open window overlooking the ground below, and fell to his death.]

E, finalmente, a quarta e terrível lição. As sucessivas entrevistas de Mirtes Renata Santana de Souza revelam uma progressão de luzes se acendendo em sua consciência. O que a princípio parecia um acidente trágico revelou-se mais tarde como um sentimento estranho, quase de pena, quando seu amado chefe lhe disse que ela seria presa. Mirtes perguntou a ela: “Como você pode ser presa se não cometeu crime?” Na pergunta, havia uma suspeita à espreita ao longe, acima do nono andar das Torres Gémeas, de onde Miguel caiu. Mas a suspeita é uma dor que vai e vem, mesmo que deixe algumas pistas confusas. A princípio, Mirtes não quis ver as imagens do último minuto de Miguel no elevador. Mas então ela o fez, e o que viu a causou revolta: a patroa conduziu o homenzinho negro mais lindo de sua vida e apertou o botão de um andar do elevador. Ela pressionou – ou indicou – o que não diminui seu crime de abandonar a criança de cinco anos. E ela voltou para a manicure.

De repente, houve um pequeno estrondo. Mas não tão repentino, porque era previsível.

(Pequenas edições na história original foram feitas para maior clareza.)


CONTRIBUINTE

Urariano Mota


Fonte: www.peoplesworld.org

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