Quando o Brasil assumir a presidência do G20 no dia 1 de dezembro, substituindo a Índia, Luiz Inácio Lula da Silva será desafiado a cumprir a sua promessa de defender os interesses do sul global no meio de duas guerras em curso e de uma economia global em desaceleração.
Lula também assume o cargo num momento de amargas divisões internas dentro do grupo, legado do presidente cessante Narendra Modi, cuja equipa, ansiosa por forçar uma declaração conjunta, ignorou as sutilezas diplomáticas em reuniões a portas fechadas.
Apesar destes obstáculos, Lula está a avançar e anunciou as três principais prioridades do Brasil como chefe do G20: a inclusão social e a luta contra a fome, a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis em favor das energias renováveis e a reforma da governação económica global.
O Grupo dos Vinte – o G20 – é um fórum para as maiores economias do mundo coordenarem questões-chave da política global. Entre eles, os países do G20 representam 85% da produção global e dois terços da população mundial.
O G20 é composto pela União Europeia e por outros 19 países, uma mistura de economias avançadas e emergentes. Na cimeira de liderança do G20, realizada em Setembro, a Índia convidou a União Africana – representando 55 países de todo o continente – a tornar-se membro do grupo.
Isto foi visto como um passo para sublinhar o papel que Modi autodenominava como “a mãe da democracia… para mitigar o défice de confiança global” entre nações ricas e pobres.
O G20 foi fundado em 1999, após a crise financeira asiática. Originalmente concebido como um conselho para os ministros das finanças discutirem a política macroeconómica, o seu âmbito foi desde então alargado para cobrir questões que vão desde o desenvolvimento global às alterações climáticas e à igualdade de género.
Os críticos, por sua vez, rejeitaram o G20 como um espaço de conversa ineficaz. Em mais de 200 reuniões, o grupo uniu-se em torno da sua declaração anual. Caso contrário, Nova Deli emitiu apenas uma declaração conjunta – sobre a União Africana.
Num contexto de crescentes tensões geopolíticas, a África do Sul e o Brasil criticaram abertamente o bombardeamento de Gaza por Israel. Por seu lado, a China acolheu em Novembro uma delegação de países muçulmanos que apelava a um cessar-fogo. Noutros lugares, o conflito em curso na Ucrânia também prejudicou os esforços de construção de consenso.
Apesar de manter uma posição neutra em relação a esse conflito, a Índia tornou-se mais crítica em relação à Rússia nos últimos meses. Modi também reduziu as compras militares de Moscovo e reforçou os laços diplomáticos com o Ocidente.
Vladimir Putin, que está sob um mandado de prisão internacional por crimes de guerra, recusou-se a participar na reunião de Setembro em Nova Deli. O presidente Xi Jinping, da China, também faltou ao evento, em meio às crescentes tensões geopolíticas com a Índia e ao aprofundamento dos laços com a Rússia.
Isso não impediu a Índia de “transformar a cimeira anual num anúncio publicitário para o culto à personalidade de Modi”, disse Jayati Ghosh, professor de economia na Universidade de Massachusetts Amherst. “Na prática, foi uma presidência ineficaz”, com o anfitrião mais interessado em melhorar a sua imagem doméstica do que em enfrentar os desafios globais.
“Ao tentar projectar a Índia como uma superpotência global, Modi passa o testemunho sem falta de problemas… a economia mundial está a abrandar, as alterações climáticas são iminentes e os conflitos na Ucrânia e na Palestina minaram as relações Norte-Sul”, acrescentou.
Antes da transferência de poder desta semana, Lula informou numa cimeira virtual dos líderes do G20 que “espero que isto [Israeli-Palestinian ceasefire] acordo pode abrir caminho para uma solução política duradoura para o conflito.”
O Brasil há muito mantém apoio a uma solução de dois Estados. Desde os ataques do Hamas em 7 de Outubro e o subsequente bombardeamento israelita de Gaza, Lula tem apelado repetidamente a um fim rápido e definitivo dos combates.
Em Outubro, o Brasil liderou uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que pedia uma pausa no conflito, mas foi vetada pelos EUA.
“A posição de Lula em relação a Israel é delicada, mas ele é indiscutivelmente o estadista global mais bem colocado para tentar impedir a carnificina”, acrescentou Ghosh.
Noutros lugares, o presidente do Brasil irritou os líderes ocidentais ao sugerir que a Rússia e a Ucrânia partilhem a responsabilidade conjunta pelo seu conflito. Ele apoiou publicamente tanto Xi Jinping como Vladimir Putin para participarem na cimeira do G20 no Rio de Janeiro no próximo ano.
Crescimento global equitativo
Na cimeira do G20 em Nova Deli, em Setembro, o Presidente Lula instou os líderes a tentarem acabar com a fome no mundo até 2030.
“Parte disso poderia ser alcançado através da criação de uma força-tarefa global contra a fome”, disse à Al Jazeera um funcionário do governo brasileiro, que pediu para não ser identificado.
“O grupo de trabalho procuraria reunir apoio em áreas como a investigação agrícola de baixo carbono e melhorias nos seguros agrícolas, especialmente em países com insegurança alimentar… que exigiriam mais financiamento das nações ricas”, disse a fonte. Não está claro qual a probabilidade de isso acontecer.
Lula também apoiou a ideia de uma alíquota global mínima de imposto sobre as sociedades de 15%. O plano da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), concebido em 2021 para reprimir a evasão fiscal e travar décadas de “competição” fiscal entre governos, poderia gerar anualmente pelo menos 150 mil milhões de dólares em receitas fiscais globais adicionais.
Quase 140 governos assinaram o acordo da OCDE e estão em diferentes fases para transformar a proposta em lei.
“Ao expandir o esquema da OCDE, o Brasil também quer aumentar o investimento na transição verde. Lula quer que o G20 aloque mais fundos em projetos de energias renováveis e conservação da natureza”, observou o responsável.
Reformando instituições multilaterais
Durante anos, Lula fez lobby para reforçar o papel dos organismos multilaterais como as Nações Unidas para tentar resolver os desafios globais. O seu compromisso com a diplomacia, no entanto, vai além de uma propensão para o consenso.
Na Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque, em Setembro, Lula defendeu a necessidade de remodelar o sistema de governação global. “A representação desigual e distorcida no comando do FMI [International Monetary Fund] e o Banco Mundial é inaceitável”, disse ele.
Em 2022, o FMI forneceu 160 mil milhões de dólares em DSE, a moeda de reserva do Fundo, aos países europeus e apenas 34 mil milhões de dólares a toda a África.
“A alocação injusta de DES é apenas parte do problema”, diz Rogério Studart, ex-representante brasileiro no Banco Mundial.
“Os limites das cotas dos fundos também são demasiado pequenos para empréstimos de emergência”, disse Studart. Ele aludiu a programas do FMI, como o Resilience and Sustainability Trust, onde as subvenções aos países são limitadas a 150 por cento dos seus compromissos de capital no fundo.
“Isso reduz a quantidade de dinheiro disponível para desastres climáticos, especialmente em países de baixa renda. Penso que Lula tentará aumentar as quotas nacionais para empréstimos de emergência e tentará reduzir as condições associadas a estes programas”, acrescentou, salientando que o seu sucesso não é claro, uma vez que isto tem sido tentado há anos”.
Studart também rejeitou a abordagem “cautelosa” do Banco Mundial à tolerância ao risco.
“O Banco pode angariar consideravelmente mais dinheiro para os países em desenvolvimento ajustando o seu rácio empréstimo/capital”, afirmou. Um rácio mais elevado aumentaria a capacidade de empréstimo do Banco, mas acarretaria um risco maior de não reembolso.
As suas observações reflectem um relatório do G20 publicado em Julho, que afirmava que, ao aumentar ligeiramente o seu rácio de empréstimos, grupos como o Banco Mundial poderiam desbloquear milhares de milhões de dólares adicionais em novos empréstimos. “O Brasil irá repetir as conclusões do relatório”, disse Studart.
Para Ghosh, professor de economia, “Lula não é nada senão pragmático. Enquanto a presidência anterior do G20 era mais sobre política interna, Lula é o candidato ideal para tentar restaurar uma medida de estabilidade à turbulenta ordem mundial de hoje.”
Fonte: www.aljazeera.com