Curralinho, Brazil – Para as comunidades da ilha brasileira de Marajó, a vazante e a vazante do Rio Canaticu marcam a virada das estações.

Durante os meses chuvosos, o rio atinge vários metros de profundidade, banhando-se por baixo das casas de madeira que se erguem das suas margens sobre palafitas. Os moradores dependem de sua água para beber, cozinhar e lavar-se.

Mas quando chega o verão, o rio se transforma em um riacho. Ainda assim, o seu fluxo é normalmente suficiente para que os habitantes locais satisfaçam as suas necessidades diárias.

Este ano, no entanto, uma seca severa engolfou grandes áreas da floresta amazônica brasileira. Tudo o que resta do Rio Canaticu em algumas áreas é um fio marrom escuro, carregado de bactérias e quase completamente seco.

“Agora não podemos usá-lo para nada. Antes não era assim”, disse Elizete Lima Nascimento, 36 anos, que mora em uma das comunidades ribeirinhas, Serafina, há uma década.

As condições de seca provocaram uma crise em cidades como Serafina – uma crise que poderá transformar o seu modo de vida nas gerações vindouras.

Moradores da comunidade de Serafina utilizam a água do rio para se lavar e até beber [Apolline Guillerot-Malick/Al Jazeera]

Centenas de milhares de pessoas dependem dos rios e córregos da Amazônia para alimentação, transporte e renda.

Mas os níveis de água historicamente baixos forçaram os residentes a reimaginar a sua relação com o ambiente. Um afluente, o Rio Negro, caiu para níveis nunca vistos em 121 anos.

“Somos totalmente dependentes da natureza”, disse Maria Vanessa Tavares de Souza, professora de 36 anos que mora em Serafina, durante reunião comunitária para discutir os problemas causados ​​pela seca.

“Agora que as alterações climáticas desequilibraram tudo, será difícil sobrevivermos aqui.”

Uma das principais fontes alimentares dos residentes já está ameaçada: o peixe. Alguns ficaram encalhados à medida que o rio recuava – e na água que resta, os cadáveres de outros peixes flutuam para a superfície.

Suspeita-se de temperaturas anormalmente altas na morte em massa. Os moradores temem que os peixes mortos possam poluir a água à medida que se decompõem.

Nove ondas de calor atingiram o Brasil desde o início do ano, com o índice de calor no Rio de Janeiro subindo para quase 60 graus Celsius (140 graus Fahrenheit) em novembro. Em todo o mundo, espera-se que 2023 seja o ano mais quente já registrado.

Os moradores sentam-se em um deck de madeira, alguns segurando crianças pequenas.  A vegetação da floresta amazônica é visível além do deck.
No salão comunitário de Serafina, moradores se reúnem para discutir problemas da seca [Apolline Guillerot-Malick/Al Jazeera]

Os cientistas culparam as alterações climáticas, impulsionadas pela queima de combustíveis fósseis, pelo aumento das temperaturas e pelas condições meteorológicas extremas.

O El Niño deste ano – um fenómeno climático que aquece as águas superficiais na região equatorial do Pacífico – foi particularmente intenso, contribuindo para a seca na Amazónia.

Mas a tendência para um clima mais seco já vem de longa data. Uma série de verões rigorosos já levou muitos moradores de Serafina a cavar poços em seus quintais para ter acesso à água subterrânea, em vez de depender do rio.

Outros apelaram à instalação de um sistema de distribuição de água potável, um grande projecto de infra-estrutura que consistiria em tubagens e instalações de armazenamento. Eles argumentam que os poços não são confiáveis ​​e não podem representar uma solução de longo prazo.

Ainda assim, proprietários de poços como Nascimento dizem que os seus sistemas de água caseiros têm sido fundamentais para resistir à seca.

“O poço é extremamente importante. Usamos sua água para tudo: para beber, cozinhar, fazer açaí, lavar a nós mesmos e as roupas”, disse ela, enquanto levantava as tábuas de madeira de seu jardim para revelar o buraco de seis metros de profundidade.

Porém, nem todas as famílias têm um poço, por isso os residentes que possuem um partilham o seu abastecimento de água com os vizinhos. Paula Lima, 43 anos, traz para casa mais de 50 litros por dia de um poço na casa de seu primo, do outro lado da comunidade, apenas para atender às necessidades de sua família.

As viagens contribuíram para os problemas nas costas de Lima. Mas ela não tem escolha. Consumir a água do rio quando seu nível está tão baixo provoca vômitos e diarreia – se não pior.

Uma mulher se inclina para levantar pranchas de madeira acima de um poço na floresta amazônica.
Muitas famílias em Serafina utilizam agora poços para obter água potável, especialmente quando a água do rio se torna demasiado lamacenta para ser consumida. [Apolline Guillerot-Malick/Al Jazeera]

Eleniuda Costa Paiva de Souza, uma enfermeira de 30 anos, teve recentemente que levar a filha de dois anos ao hospital mais próximo – uma viagem que exigiu uma caminhada pela selva e depois mais cinco horas de barco. Seu filho ficou doente depois de ingerir o lodo do rio.

De Souza disse que pretende deixar a comunidade em breve. “A vida aqui só vai piorar. Na cidade as coisas serão mais fáceis”, explicou ela.

O isolamento faz parte da vida das comunidades ribeirinhas: Serafina abraça uma curva sinuosa do rio, cercada por floresta tropical até onde a vista alcança. Mas o fraco fluxo do rio Canaticu tornou Serafina ainda mais isolada.

Para se abastecerem de suprimentos, os moradores normalmente usam o rio para viajar para as cidades próximas. Mas com a água tão rasa, os moradores são forçados a manobrar seus pequenos barcos de madeira a passo de caracol para evitar troncos e raízes expostas.

Muitos temem que, caso ocorra uma emergência médica, demore muito para chegar à cidade mais próxima.

Rio abaixo, na foz do Canaticu, o município de Curralinho tem enfrentado suas próprias dificuldades em meio à forte seca.

Localizada no litoral sul de Marajó, a cidade e sua população de quase 34 mil habitantes viram incêndios devastarem milhares de hectares de floresta tropical próxima em novembro.

Curralinho não foi o único a enfrentar as chamas violentas. Nas primeiras duas semanas de outubro, mais de 2.900 incêndios eclodiram no estado do Amazonas, um número recorde.

A fumaça era tão espessa que sufocou a maior cidade da região, Manaus, dificultando a navegação e a entrega de suprimentos essenciais.

As empresas criminosas também aproveitaram as condições de seca para destruir a floresta tropical com fogo, como parte de esquemas de apropriação de terras.

Dois bombeiros caminham por uma fazenda de açaí incendiada, onde palmeiras queimadas são as únicas plantas que restam no terreno.
No interior de Curralinho, bombeiros patrulham antiga plantação de açaí destruída por incêndios [Apolline Guillerot-Malick/Al Jazeera]

Mas em Curralinho, os pequenos agricultores foram os grandes responsáveis ​​pelos incêndios. Utilizam o fogo como ferramenta de manejo da lavoura, para retirar os restos da colheita do ano anterior e neutralizar a acidez do solo.

As condições de seca, no entanto, fizeram com que alguns dos incêndios ficassem fora de controle.

A cidade declarou estado de emergência já em setembro, alertando sobre o aumento do risco de incêndio durante a seca.

A precipitação na Amazônia estava abaixo da média há pelo menos seis meses. Uma das causas a longo prazo é a desflorestação: as florestas tropicais absorvem e libertam humidade, ajudando a gerar ciclos de chuva. Mas sem as árvores densamente compactadas, a umidade cai, o que significa menos chuva.

“Há dez a 15 anos, estes incêndios não eram um problema. A floresta costumava ser mais úmida, o que impedia a propagação das chamas”, disse Ezaquiel Pereira, da área ambiental de Curralinho.

Máquinas para preparar o solo para o plantio poderiam impedir os agricultores de iniciar as queimadas. Mas esse equipamento pode custar cerca de 25 mil dólares, acrescentou Pereira.

Para agricultores como Maria Terezina Ferreira Sampaio, de 65 anos, tal gasto está fora de questão.

Uma mulher de regata segura uma raiz de mandioca colhida da terra ao seu redor.
Incêndios e seca fizeram com que a agricultora Maria Terezina Ferreira Sampaio, de 65 anos, perdesse parte de sua safra de mandioca [Apolline Guillerot-Malick/Al Jazeera]

Sampaio mora na periferia de Curralinho com o marido em uma casinha de madeira vazia onde comprou cinco filhos. O casal depende da venda da colheita para complementar a aposentadoria, permitindo-lhes comprar alimentos, remédios e roupas.

Este ano, a seca devastou as suas laranjeiras, coqueiros, limoeiros e bananeiras e impediu que as suas plantas de mandioca crescessem até atingirem um tamanho comestível.

“Tenho chorado e chorado. Depois de tanto sacrifício…” As palavras de Sampaio foram sumindo, enquanto ela olhava desesperada para o chão ressecado, as folhas secas estalando sob seus pés.

Apesar dos esforços, centenas de pessoas tiveram suas plantações destruídas devido à falta de chuvas, disse o secretário de Meio Ambiente de Curralinho, Esmael Lopes.

A uma escala regional, o pior da seca ainda pode estar por vir, uma vez que o El Niño tende a intensificar-se em Dezembro, antes de desaparecer em Abril ou Maio.

Em Curralinho, fortes chuvas neste mês levantaram o ânimo e deram esperança de alívio do período de seca. Mas mesmo que o tempo chuvoso chegasse agora, seria tarde demais, disse Sampaio.

“Já deveríamos estar colhendo. Em vez disso, tudo está morto”, disse ela.

Fonte: www.aljazeera.com

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