Em Araçuaí, pequena cidade do sudeste brasileiro a oito horas de carro do aeroporto internacional mais próximo, a restauranteur Maria Aparecida Alves de Aguilar nunca imaginou que imprimiria cardápios em inglês. Os negócios andaram irreconhecivelmente ativos nos últimos meses na Churrascaria e Restaurante 367. As equipes de trabalho “chamam vinte para o almoço de cada vez” e chegam à noite para as cervejas depois do trabalho.
Araçuaí é uma pequena cidade no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do Brasil. Com 35.000 habitantes, é uma das maiores cidades de uma região rural que abriga cerca de 750.000 pessoas. A água é escassa, mas mais da metade dos moradores do vale estão envolvidos em alguma forma de agricultura, muitos na agricultura de subsistência. O Vale do Jequitinhonha tem uma longa história de fome, o que lhe valeu o infeliz apelido de “Vale da Miséria”.
Recentemente, porém, a região ganhou um novo nome em discursos políticos e comunicados corporativos ao redor do mundo: “Vale do lítio”.
A transição energética global deve exigir um aumento impressionante no suprimento de lítio. Um elemento essencial nas baterias EV, a demanda pode aumentar até 42 vezes em duas décadas, de acordo com as projeções da Agência Internacional de Energia. O Vale do Jequitinhonha fica em 85 por cento dos depósitos de lítio conhecidos do Brasil, o que desencadeou uma corrida para investir e desenvolver. Em maio, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, e autoridades federais brasileiras viajaram à Nasdaq, em Nova York, para lançar o projeto “Lithium Valley”, em busca de investidores internacionais para as mineradoras de lítio que operam na região.
Ao promover esse investimento, as autoridades defendem que a mineração de lítio transformará a região há muito negligenciada em um “vale de oportunidades”. No centro dessa campanha está a Sigma Lithium, que iniciou a produção em abril, a primeira das novas mineradoras da região a fazê-lo. A Sigma promete produzir um lítio “verde” usando energia renovável e 90% de água reciclada, contratar locais e investir voluntariamente mais do que o país exige em municípios locais e projetos ambientais.
A Sigma espera que sua mina de Grota do Cirilo esteja em produção por 13 anos, gerando mais de US$ 5 bilhões para a empresa e mais de US$ 200 milhões em pagamentos aos municípios locais. Este ano, a empresa espera pagar cerca de US$ 10,7 milhões a Araçuaí e à vizinha Itinga, pouco menos de um décimo do PIB combinado dos dois municípios, segundo dados do censo brasileiro de 2022. A Sigma também instituiu programas para construir poços para comunidades rurais, criar linhas de microcrédito para mulheres empresárias locais e pagar pela preservação das florestas locais.
Mesmo assim, como a região parece estar passando por um boom transformador do lítio, há uma preocupação crescente sobre os custos para as comunidades rurais mais vulneráveis aos impactos ambientais da mineração e sobre se os governos locais podem traduzir a presença de empresas de mineração internacionais em ganhos duradouros para os moradores da região. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem feito campanha contra o avanço da mineração de lítio, citando a inevitável degradação ambiental, práticas de uso intensivo de água e a oposição de comunidades quilombolas protegidas pelo governo federal – assentamentos geralmente fundados por escravos fugitivos.
À medida que os metais críticos se tornam uma ferramenta-chave nas negociações estratégicas e econômicas globais, o Brasil espera aumentar seu perfil como um grande produtor de lítio. Segundo Elaine Santos, que pesquisa minerais críticos na Universidade de São Paulo, a política do governo Lula em relação ao lítio tem sido “em grande parte uma continuidade com a política anterior [Bolsonaro] administração, de liberalizar as exportações”. Em 2022, o governo do ex-presidente Bolsonaro revogou uma política de décadas que restringia as exportações de lítio. Este ano, o Ministério de Minas de Lula fez parceria com o governo do estado de Minas Gerais na promoção do “Vale do lítio” para investidores internacionais.
Minas Gerais também segue uma política de privatizações e busca de investimentos internacionais na produção de lítio. No ano passado, o governador Romeu Zema vendeu a participação de 33% do estado na CBL, mineradora de lítio que opera no estado há décadas. E neste ano, tramita na assembléia estadual um projeto de lei que criaria um “Centro de Lítio” regional que permitiria ao Poder Executivo criar um regime tributário especial para as mineradoras de lítio da região.
Hoje em Araçuaí, novas construções são a norma em toda a cidade. Maria diz que a mudança – visível do pátio de seu restaurante – é impressionante. O hotel vizinho, que está “sempre cheio”, construiu recentemente um novo edifício, duplicando a sua capacidade. Uma oficina de lavagem e conserto de carros está sendo montada no terreno abandonado ao lado, e o posto de gasolina está aberto 24 horas. “Estamos vendo nossa população investindo, buscando melhorar”, afirma. “Isso é bom.”
Em meados de junho, a Associação de Prefeitos de Minas Gerais (FMP) realizou seu primeiro “Seminário de Lítio” público, reunindo autoridades nacionais e estaduais, líderes empresariais e mobilizadores comunitários locais. O prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbossa, do Partido Social Democrata, diz acreditar que a cidade “não viveu um momento tão favorável como este”. Barbossa diz que para as mineradoras de lítio hoje, “existe uma obrigação de mercado, não uma obrigação legal, de chegar de uma forma que atenda às necessidades sociais, ou às questões ambientais”.
O deputado estadual Jean Freire, do Partido dos Trabalhadores de Lula, ecoou muitos de seus colegas no palco ao reconhecer uma oportunidade, mas expressou preocupação em confiar nas empresas para mitigar impactos em comunidades vulneráveis e garantir que a região seja adequadamente compensada. Freire diz que o vale tem uma longa história de indústrias extrativas, desde a mineração de diamantes até as plantações de eucalipto e a recente construção de barragens, e que cada uma declarou “agora o progresso está chegando”.
“E temos a história da mineração como guia”, diz ele, apontando as tendências que ligam a mineração ao aumento da violência, aluguéis disparados para residentes e estudantes locais e danos ambientais. Ainda assim, ele observa: “Temos que ter em mente que esta é a região menos desenvolvida de Minas Gerais e uma das menos desenvolvidas do Brasil. “Temos uma riqueza imensa, economicamente falando, sob nossos pés. O que podemos fazer para manter essa riqueza para nossa população?”
Parte da resposta, para Freire e muitos outros funcionários estaduais e nacionais no palco, é uma política voltada para o desenvolvimento da capacidade de processamento de lítio na região e, eventualmente, até para a fabricação de baterias na área.
No entanto, passos concretos para este tipo de estratégia não são claros. Na legislatura estadual, o projeto de lei “Lithium Hub” de Freire foi destituído de linguagem que exigiria que o processamento de lítio ocorresse no Vale do Jequitinhonha. Nacionalmente, diz Elaine Santos, esse tipo de estratégia seria possível, mas levaria anos. Santos acredita que a atual falta de regulamentação para as exportações de lítio dificultará a criação de uma cadeia competitiva de processamento e fabricação de baterias de lítio no Brasil e facilitará a exportação de matérias-primas.
O conflito local pelo lítio envolve principalmente o acesso à água, recurso escasso no Vale do Jequitinhonha. O grupo ativista MAB, que se organiza na região desde 1990, afirma que “a luta pelo acesso à água é a pauta mais importante do semiárido”. Embora a Sigma utilize um sistema de reciclagem de água de última geração, o MAB destaca que ainda possui autorização para usar 3,8 milhões de litros de água por dia; em seus cálculos, o suficiente para atender 34 mil famílias.
Em alguns casos, as comunidades locais estão competindo diretamente com empresas de mineração por água e perdendo o acesso a fontes de água estáveis. No dia 15 de junho, quando o caminhão-pipa chegou a Cinta Vermelha, aldeia indígena nos arredores de Araçuaí, o motorista disse à moradora Cleonice Pankararu que a empresa faria apenas uma entrega na semana seguinte. As 10 famílias que compõem Cinta Vermelha, assim como muitas comunidades da região, dependem da entrega de água durante a estação seca e recebem uma bolsa do órgão federal de saúde indígena para pagar a companhia de água local. Mas, nos últimos meses, Cleonice Pankararu (Pankararu é o nome de sua tribo) foi informada por representantes da empresa que as entregas seriam menos frequentes e que em julho os preços subiriam além do que sua comunidade pode pagar porque a Sigma pode pagar mais. Segundo Cleonice, representantes da empresa de distribuição de água “explicitamente” disseram a ela “que não renovariam o contrato conosco, que iriam trabalhar com [Sigma] e que eles não poderiam mais servir nossa comunidade”.
Nos últimos meses, diz ela, os moradores tiveram que reduzir os banhos e a lavagem de roupas. Representantes da Cinta Vermelha têm feito viagens à capital do estado, Belo Horizonte, na esperança de conseguir recursos federais para comprar um caminhão-pipa para a comunidade.
Em maio, o MAB aliou-se à deputada estadual Beatriz Cerqueira e às comunidades locais em um esforço bem-sucedido para revogar uma licença Sigma para pesquisar depósitos de lítio na Chapada do Lagoão, uma Área de Proteção Ambiental (APA) fora de Araçuaí. MAB e Cerqueira apresentaram denúncia ao Ministério Público, alegando que a autorização violou os direitos das comunidades quilombolas reconhecidas pelo governo federal, que não receberam “consulta prévia, livre, informada e de boa-fé”, conforme exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que o Brasil assinado em 2002. O MAB diz que a área é considerada a “caixa d’água de Araçuaí” e 300 famílias contam com as nascentes da área para água potável e agricultura de subsistência.
Antonio Gomes representa agricultores e trabalhadores das comunidades do entorno da cidade como Diretor Político do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araçuaí e vive dentro da unidade de conservação, onde cultiva abacaxi e pequi, produtos básicos da região. O sindicato de Gomes votou a favor da licença de pesquisa, apenas para defender a anulação da licença meses depois.
A princípio, muitos sindicalistas pensaram: “Vamos deixar que pesquisem a área, mas quando voltarem para pedir a mina, não vamos autorizar”, diz Gomes. Mais tarde, porém, Gomes e membros da comunidade consideraram a política da região. “Se eles pesquisarem e encontrarem o que querem, meu Deus, será imediatamente liberado.” Ele conta que o MAB tem se empenhado muito na organização e educação dos moradores da região. “Nossa população não tem muita educação formal”, diz Gomes, “as pessoas não sabem onde encontrar informações sobre isso”.
Gomes diz que não quer que a APA sofra os transtornos que tem visto em Poço Dantas e Barreiros, pequenas comunidades próximas à mina operacional Sigma. Segundo Gomes e o MAB, os moradores reclamam da poeira, do barulho que dura muito depois da meia-noite e das rachaduras que surgem em suas casas com as explosões.
Mesmo aqueles que compartilham essas preocupações acham difícil recusar o fluxo de recursos sem precedentes. Como coordenador do Programa da filial de Araçuaí do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), Marton Martins diz que o voto da entidade a favor do alvará de pesquisa do Sigma foi um voto por informações extremamente necessárias sobre a região. O CPCD atua na área da APA há anos, desenvolvendo sítios de permacultura, sistemas de captação de água e programas de educação de jovens. “A Chapada é muito grande e pouco compreendida. Sabemos que é uma fonte de água para o município. Mas não há estudos técnicos detalhados de como ele funciona.” Martins diz que um estudo de localização das nascentes, detalhamento da saúde e saneamento do bioma e desenvolvimento de um plano de manejo, que a Sigma se propôs a financiar, há muito tempo é “fundamental” para os objetivos do CPCD de garantir água para as famílias da área. O Conselho da APA não tem recursos para assumir isso sem ajuda externa.
“A CPCD pensa na mineração como a chegada de qualquer outra indústria”, explica Martins. “Como chegam, que compensação deixam para a região?” Mais tarde, ele diz: “Um plano de gestão [for the APA] seria uma compensação extremamente importante.”
O CPCD disse em comunicado defendendo seu voto a favor do alvará de pesquisa da Sigma que no Vale do Jequitinhonha “a mineração ocorreu, está ocorrendo e continuará a ocorrer”. Eles, como muitos outros na região, são deixados para navegar em como sua comunidade pode se beneficiar e os limites que estão dispostos e são capazes de impor.
Fonte: https://www.truthdig.com/articles/global-race-for-lithium-lands-in-rural-brazil/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=global-race-for-lithium-lands-in-rural-brazil