Argentina: a tortura não é esquecida, a memória é saudável, a justiça é digna

Por Sérgio Ferrari*

LQS 17 de julho de 2024

Seis anos após o fim do julgamento pelos abusos sofridos no Presídio de Coronda durante a última ditadura, a justiça acaba de abrir um segundo processo que perturba a “devida obediência”, tese que proclama que a tortura é aceitável se for aplicada no cumprimento das ordens de superiores hierárquicos.

Em 11 de maio de 2018, o Tribunal Oral Federal de Santa Fé, Argentina, condenou os ex-comandantes da Gendarmaria Nacional Juan Ángel Domínguez e Adolfo Kushidonchi a 17 e 22 anos de prisão, respectivamente, por crimes contra a humanidade durante seu mandato como diretores daquela prisão durante a última ditadura civil-militar. A decisão final foi publicada em 7 de junho daquele ano (https://www.santafe.gov.ar/index.php/web/content/download/264532/1385874/file/Sentencia%20causa%20Dominguez%20Kushidonchi.pdf).

Essa frase parecia fechar uma página da história. No entanto, não foi. Há poucos dias, o Ministério Público Federal de Santa Fé indiciou uma dezena de ex-guardas penitenciários, oficiais da Gendarmaria Nacional, pessoal médico e um oficial militar aposentado de alta patente pelos mesmos tipos de crimes. Todos com responsabilidades em Coronda nesse mesmo período.

Entre 1974 e 1979, 1.153 presos políticos foram detidos em Coronda, dos quais três – Juan Carlos Voisard, Raúl Manuel San Martín e Luis Alberto Hormaeche – morreram por falta de cuidados médicos adequados. E um quarto, Daniel Gorosito, foi assassinado após ser transferido de Coronda para outro centro. Tudo isto no quadro de um regime quotidiano baseado no isolamento quase absoluto dos detidos – do resto da prisão e do mundo exterior – e realizado com base no lema “tudo é proibido”. A única coisa permitida foi a agressão ilimitada aos presos políticos por parte da maioria dos funcionários, desde os directores até ao último agente penitenciário, incluindo médicos e enfermeiros.

Esta nova causa tem diversas fontes. Conforme explica Lucila Puyol, advogada e ativista feminista e de direitos humanos do Grupo HIJOS de Santa Fé (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio), Coronda II leva em conta acontecimentos vividos em Coronda e apresentados nas audiências do Caso Coronda I entre dezembro de 2017 e maio de 2018. Bem como contribuições do processo judicial tramitado alguns anos antes na cidade de Rosário, que envolveu 66 vítimas que em sua maioria passaram por Coronda. Além disso, elementos de causa especial pela morte de Juan Carlos Voisard.

Puyol lembra que, no primeiro Caso Coronda, o grupo de advogados demandantes, do qual Puyol fazia parte representando a Associação El Periscopio – que reúne ex-presos políticos daquele presídio – já havia solicitado seu encaminhamento ao Ministério Público Federal .de Santa Fé “provas documentais e testemunhais reunidas neste julgamento… com o propósito de continuar sua investigação.” Formalmente, o queixoso, conforme consta do processo, mencionou com nomes, apelidos e pseudónimos 18 guardas prisionais, dois alferes e dois comandantes da gendarmaria, três médicos e uma enfermeira, bem como dois membros do antigo pessoal da inteligência civil. Os nomes e funções de cada um, co-responsável pela implementação do regime desumano de Coronda, provêm do depoimento de boa parte das mais de 70 testemunhas que testemunharam no Caso Coronda I.

Lucila Puyol

“Todo o material documental e testemunhal do primeiro julgamento”, explica Puyol, “constitui prova neste novo caso em andamento”. E destaca o importante papel desempenhado em todo este longo processo de busca de justiça por parte do Asociación Civil El Periscopio, “o que conferiu aos ex-presos políticos daquela prisão o lugar de protagonistas principais, como vítimas, testemunhas e promotores da causa”. Por fim, afirma que seria importante que o grupo de ex-presidiários continuasse desempenhando esse papel, como demandantes, também neste novo julgamento que se inicia.

A Associação El Periscopio nasceu em 2003. Seu nome vem de um pequeno instrumento/invenção utilizado pelos presos de Coronda para observar o movimento dos guardas de dentro das celas. O periscópio foi construído com um pequeno pedaço de vidro, que tinha no verso uma massa de pão enegrecida, adquirindo propriedades de espelho. Com o auxílio de um canudo de vassoura ele poderia ser retirado pelos furos inferiores da porta e assim monitorar a movimentação dos guardas no pavilhão.

A Associação foi fundada para dar personalidade jurídica à publicação do livro coletivo, anônimo e testemunhal Do outro lado do olho mágico. Esquecimentos e memórias de ex-presos políticos de Coronda 1974-1979, que já conta com três edições e mais de 12 mil exemplares vendidos em vários idiomas. A Associação promoveu também o projeto de tradução e publicação das versões em francês (Ni fous ni morts, Vevey, Suíça, 2020), em italiano (Grand Hotel Coronda, Roma, Itália, 2022) e em português (Nem loucos, nem mortos , São Paulo, Brasil, 2023). Em 2017, El Periscopio assumiu a função de promotor no primeiro julgamento de Coronda (https://elperiscopio.org.ar/).

A memória como desafio e exercício de cura

O regime prisional quotidiano que sofriam os detidos de Coronda tinha como objectivo “a destruição física, psicológica e ideológica dos presos políticos, como reconheceram abertamente os repressores daquela prisão e os militares, que transformaram a prisão num laboratório onde aplicaram sucessivamente, e de forma escalonada, um regime cada vez mais humilhante e violento”, lembra Froilán Aguirre, membro do Conselho de Administração do El Periscopio e histórico ativista político na província de Santa Fé.

Froilán Aguirre. Foto: O Periscópio

Preso em 1977 com apenas 17 anos, Aguirre passou por diversos centros de detenção, inclusive vários clandestinos, e aos 18 anos foi transferido para Coronda. “Proibiram-nos de tudo”, recorda: “falar, ler, escrever, assobiar, fazer atividade física na cela, dormir durante o dia. Éramos constantemente punidos por qualquer coisa que os guardas que nos vigiavam dia e noite quisessem.” E acrescenta: “O próprio regime de Coronda constituía uma tortura diária. Não há desculpas. Todos foram responsáveis: desde os militares e o diretor da gendarme e seus auxiliares, passando pelos guardas, que faziam o trabalho sujo e aplicavam espancamentos e castigos, até aos médicos cúmplices que não nos atenderam. O sadismo de muitas dessas humilhações foi muito além do simples cumprimento de ordens superiores.”

Segundo Aguirre, este novo caso que acaba de começar e já envolve uma dezena de arguidos, “constitui um novo e essencial exercício de memória colectiva e de justiça, uma motivação essencial para continuar a denunciar estas brutalidades da ditadura. E embora tenha levado muitos anos para se concretizar, torna-se, mais uma vez, um exercício de cura, não só para aqueles de nós que sofrem humilhações diárias, mas para as nossas famílias e a sociedade como um todo.” Coronda II tem, como aponta Aguirre, um valor muito especial porque começa num momento em que sopram na Argentina discursos de ódio e ares negacionistas que colocam em questão o que realmente significou a ditadura. “A luta pela memória e pelos direitos humanos assume hoje uma importância ainda maior para a nossa sociedade como um todo”, enfatiza.

Por que El Periscopio sustenta que a sua contribuição à memória, à verdade e à justiça através do seu livro testemunhal em diferentes línguas, como os dois processos jurídicos mencionados, constitui um “exercício reparativo” para a sociedade como um todo? A resposta não deixa dúvidas para Aguirre, que, na primeira pessoa do plural, apresenta um exemplo esclarecedor. “Conhecemos diretamente e estamos cientes do processo de debate que estes casos judiciais estão provocando na mesma população de Coronda, cuja vida gira em torno da prisão há décadas. Há um debate público sobre a responsabilidade de cada um e sobre os horrores que aquela prisão abrigou durante a ditadura.”

Durante anos, diz Aguirre, El Periscopio foi convidado pela comunidade de Coronda para palestras públicas, atividades culturais, feiras do livro e encontros com jovens nas escolas. “Para nós é um contributo essencial, do nosso grupo de ex-presidiários, funcionar como antídoto contra o esquecimento e tentar fazer com que a própria população de Coronda, como muitos já estão fazendo, se distancie do paradigma cidade-prisão que define aquela cidade de 17 mil habitantes onde ainda vivem muitos ex-agentes penitenciários ou seus herdeiros.”

E aponta um facto que considera essencial: não se trata apenas de denunciar, mas também de partilhar com a sociedade, em particular com os jovens, como nestas circunstâncias tão difíceis, numa relação de forças absolutamente desfavorável, “a nossa unidade, colectividade resistência “Humana, solidária, permitiu-nos sobreviver, desenvolver-nos como seres humanos e consolidar-nos como militantes em favor de uma Argentina melhor e de Outro Mundo Possível”.

Prisão de Coronda. Foto: Sérgio Ferrari

Presente com futuro

Se este novo processo legal continuar sem interrupção, hoje na sua fase inicial, muito possivelmente dentro de alguns meses, ou anos, determinará novas responsabilidades criminais e novas sentenças. Talvez alguns dos acusados ​​escapem à punição porque já terão morrido e talvez muitos dos ex-prisioneiros ou seus familiares que sofreram esses horrores não possam sentir-se justificados. Como explica Aguirre, “os tempos judiciais são particulares e respondem a circunstâncias específicas e políticas gerais que nem sempre são controláveis ​​por aqueles de nós que acusam e exigem a verdade”. No entanto, defende, “sabemos que estamos a fazer a coisa certa e que estamos a contribuir, muito humildemente, para uma sociedade futura mais saudável, mais justa e melhor”.

Na mesma linha, Lucila Puyol destaca o papel inquestionável dos ex-prisioneiros corondae e periscopianos (como se autodenominam) na divulgação e transmissão desses julgamentos à sociedade e à mídia: “Contribuição pedagógica essencial e objetivo transcendente na construção da memória. E conclui com otimismo que, embora “o poder judiciário tenha sido muito lento na resposta aos acontecimentos ocorridos há mais de 40 anos, sem dúvida a justiça é sempre necessária e restaurativa”.

Na sua reflexão final, Puyol reconhece o trabalho permanente que os membros da O Periscópio vêm sendo realizados há várias décadas na Argentina e no exterior. Por exemplo, através de seu livro sobre Coronda, com centenas de apresentações e em diversos idiomas. Além de julgamentos para exigir justiça. “Uma obra, insisto, essencial para a construção da memória colectiva”, sublinha Puyol, que defende que estes ex-presos políticos “foram até capazes de transformar o exílio de muitos, Coronda é – um facto doloroso a nível pessoal e familiar – num poderoso movimento internacionalista que informa, divulga e conscientiza sobre o que foi o terror ditatorial argentino.

Mas um movimento que não termina na denúncia, mas também partilha os sonhos e esperanças de uma geração que lutou por um país melhor. Reatualizando e valorizando o que foi a resistência coletiva e solidária, e em unidade, na Prisão de Coronda, como força de sobrevivência, vida e compromisso transformador.”

* Mais artigos do autor. Jornalista argentino residente em Genebra, ex-preso político de Coronda e membro da Associação El Periscopio.

fonte: https://loquesomos.org/argentina-la-tortura-no-se-olvida-la-memoria-sana-la-justicia-dignifica/

Fonte: https://argentina.indymedia.org/2024/07/22/argentina_coronda-la-tortura-no-se-olvida-la-memoria-sana-la-justicia-dignifica/

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