São Paulo, Brasil — Em 1808, o rei de Portugal, D. João VI, chegou em visita ao então Brasil colonial com um grande e ornamentado relógio de pêndulo, presente do rei Luís XIV da França.
Esse artefato está na posse do Estado brasileiro desde então, exposto no Palácio do Planalto há 11 anos.
Mas em 8 de janeiro, as câmeras de vigilância dentro do palácio do Planalto capturaram um homem jogando a obra de arte de valor inestimável no chão, destruindo-a irremediavelmente.
Esse indivíduo, um das centenas de manifestantes que invadiram a sede do governo na capital federal Brasília naquele dia, vestia uma camiseta preta estampada com o rosto do ex-presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro.
Agora, mais de uma semana depois, o Brasil ainda está, literalmente, juntando os cacos. Estão em andamento investigações sobre os autores do motim, quem o organizou e de onde veio o dinheiro.
O ataque começou quando partidários pró-Bolsonaro enfurecidos forçaram a passagem pelos cordões policiais e entraram no Congresso, no Supremo Tribunal Federal e no Palácio do Planalto, todos localizados um ao lado do outro.
Eles exigiam um golpe de estado militar para anular o resultado da eleição presidencial de 2022 e restabelecer o derrotado Bolsonaro como presidente.
Com o judiciário e o legislativo de férias – e o recém-empossado presidente esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva fora da cidade – os prédios estavam praticamente vazios. Nenhuma vítima resultou do ataque.
O dano à propriedade pública, no entanto, foi sem precedentes, pois vândalos invadiram os prédios, quebrando janelas, destruindo obras de arte de valor inestimável e afixando slogans de extrema-direita nas paredes.
Quase 1.400 pessoas foram presas após o ataque e permanecem sob custódia policial. Na segunda-feira, promotores federais indiciaram 39 deles por crimes como conspiração armada e tentativa de golpe de Estado. Dezenas de novas acusações são esperadas.
Os senadores prometeram um inquérito para descobrir quem financiou os distúrbios.
“Existe claramente um núcleo de apoio bem financiado para uma agenda política de direita”, disse Andre Pagliarini, professor assistente de história no Hampden-Sydney College. “E está disposto a investir em organização antidemocrática, mesmo após a derrota eleitoral.”
Mario Sergio Lima, analista sênior do Brasil na consultoria Medley Advisors, disse acreditar que os distúrbios foram financiados em grande parte por “magnatas do varejo e do agro” de nível médio, um eleitorado que apoiou firmemente Bolsonaro antes da eleição.
Bolsonaro passou parte de seu mandato lançando dúvidas sobre o sistema de votação totalmente eletrônico do Brasil – um sistema que ainda não recebeu uma única acusação de fraude credível em seus 27 anos de uso. Em várias ocasiões, ele sugeriu que não aceitaria a derrota nas urnas.
No segundo turno da eleição de outubro, o ex-capitão do exército de extrema-direita perdeu para Lula por uma margem estreita de pouco mais de dois milhões de votos. Após a divulgação dos resultados, Bolsonaro manteve um período de silêncio público. Até hoje, ele não admitiu explicitamente a derrota.
Mas os apoiadores de Bolsonaro foram às ruas em apoio ao presidente cessante, bloqueando as principais rodovias e pedindo um golpe militar.
O próprio Bolsonaro deixou o país no dia 30 de dezembro, uma semana antes do atentado em Brasília. Ele está hospedado em uma casa alugada na Flórida, no sudeste dos Estados Unidos.
Após o ataque de 8 de janeiro, a Polícia Federal do Brasil disse ter encontrado um projeto de decreto na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro.
Ele convocou um comitê liderado por militares para “analisar a integridade da eleição presidencial”. Se promulgada, também colocaria a capital em estado de emergência.
Torres, que foi preso, alegou ter recebido o documento de um público e que estava sendo tirado do contexto. Mas os críticos condenaram o documento como evidência de um golpe de extrema-direita.
“Acho difícil imaginar que um golpe teria ocorrido sem o apoio dos EUA”, disse Pagliarini, professor de história do Hampden-Sydney College. “Se Donald Trump estivesse na Casa Branca, a situação quase certamente teria sido muito diferente.”
A rebelião foi um batismo de fogo para o nascente governo Lula. Mas Pagliarini acredita que o ataque pode acabar pesando a favor de Lula.
“Você poderia argumentar que esta é a última coisa que Lula deseja neste estágio inicial de sua administração”, disse Pagliarini. “Mas há uma oportunidade nesta emergência.”
“A grande habilidade de Lula é ser capaz de mediar entre perspectivas divergentes, criando um consenso unificador a partir de interesses aparentemente inconciliáveis. Se ele puder mostrar isso aos brasileiros neste contexto turbulento, poderá lembrá-los de sua posição singular na política nacional.”
O analista do Brasil, Mario Sergio Lima, por sua vez, chamou a decisão de Lula de anunciar rapidamente uma intervenção federal no aparato de segurança pública de Brasília de “um golpe de mestre”.
“Ele poderia facilmente ter trazido os militares, mas isso os teria fortalecido”, disse Lima, aludindo ao fato de Bolsonaro manter laços estreitos com os militares. De fato, a lista dos presos por envolvimento no motim contém mais de uma dezena de militares ativos e aposentados.
O analista acrescentou que a situação pode até dar a Lula maior apoio no Congresso.
“Não estou dizendo que ele terá uma coalizão governista massiva, mas a maioria dos políticos, mesmo da oposição, procurará se distanciar de Bolsonaro”, disse Lima.
Do ponto de vista global, o professor de relações internacionais da FGV, Oliver Stuenkel, disse que a esmagadora maioria dos líderes mundiais se solidarizou com o governo Lula e seus esforços para processar os manifestantes, por medo de que ataques semelhantes possam ocorrer em outros lugares.
“A leitura internacional disso é que, quanto mais rigorosa for a resposta dos tribunais brasileiros, menor o risco de os ataques de 8 de janeiro inspirarem movimentos semelhantes em outros países”, disse Stuenkel.
Fonte: www.aljazeera.com