Há 1.826 dias a jornalista brasileira Eliane Brum publica o mesmo tweet de a conta dela: “Quem mandou matar Marielle? E porque?” Hoje é o quinto aniversário do assassinato de Marielle Franco, uma negra, queer, socialista e ativista de direitos humanos nascida na favela. Em seu site, a organização de direitos humanos Instituto Marielle Franco exibe um contador, registrando os dias, horas e minutos decorridos desde o assassinato da ativista.
Em 12 de março de 2019, dois dias antes do primeiro aniversário do assassinato de Franco e seu motorista Andersom Gomes, a Polícia Civil do Rio de Janeiro anunciou as prisões de Élcio Vieira de Queiroz e Ronnie Lessa. Queiroz, policial antes de ser expulso da corporação em 2016 por trabalhar como segurança particular em uma casa de jogo ilegal, dirigia o Chevy Cobalt que seguia Franco a quatro quilômetros do bairro da Lapa, onde ela havia ido para participar de um evento em homenagem às mulheres negras ativistas. Queiroz acompanhou Franco do evento até o local de sua execução, na Rua Joaquim Palhares, no Estácio. Lessa, militar aposentado da reserva da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que só foi dispensado neste ano, é acusado de ter disparado treze vezes contra o carro, matando Franco e Gomes. A assistente de Franco, Fernanda Chaves, foi a única sobrevivente.
As balas usadas no assassinato não podem ser vendidas a civis. A Polícia Civil investigador confirmou que eles pertenciam a um lote vendido para a Polícia Militar de Brasília em 2006. Esse mesmo lote também está ligado ao massacre de dezessete pessoas pela Polícia Militar de São Paulo nos municípios populares de Barueri e Osasco da região metropolitana de São Paulo. A polícia acredita que outro Cobalt, também com placas clonadas, esteja envolvido no assassinato de Franco.
Em quatro anos, muito pouco veio à tona além desses fatos básicos do caso. Lessa e Queiroz ainda aguardam julgamento do júri pelo assassinato político. Juízes, no entanto, já condenaram Lessa a mais de treze anos por venda ilegal de armas de fogo. Na mesma operação que levou à prisão da dupla, a polícia encontrou 117 armas de fogo desmanteladas – uma das maiores apreensões de armas da história da Polícia Civil do Rio – na casa de um dos amigos de Lessa. Queiroz foi condenado em 2020 a cinco anos por porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. Ele já havia sido investigado pela Polícia Federal brasileira em 2011 por trabalhar com milícias e cartéis de drogas do Rio.
Desde a manhã seguinte ao assassinato, os conhecedores da economia política da morte no Rio suspeitam que o assassinato de Franco foi perpetrado por milicianos. Essas gangues de ex e atuais policiais, soldados e até bombeiros têm, desde o fim da ditadura militar, lucrado com a insegurança pública crônica do Rio por meio de esquemas de proteção, venda de armas e monopólios de bens básicos como gás e transporte na região metropolitana do Rio. Têm se destacado especialmente na Zona Oeste da cidade e nos municípios da Baixada Fluminense.
As milícias, como documentou o trabalho do sociólogo Jóse Cláudio Souza Alves, também têm laços profundos com as máquinas políticas do Rio e dos municípios vizinhos. Eles até concorreram com sucesso a candidatos a cargos públicos. De fato, existem muitos vínculos confiáveis com a família Bolsonaro, que muitas vezes conquistou apoio político por meio de membros de base do exército e da polícia e, por extensão, das milícias violentas do Rio.
Franco iniciou sua carreira política em 2007 como membro do Partido Socialismo e Liberdade (Partido Socialismo e Liberdade – PSOL). Lá, ela serviu como assessora de direitos humanos do então deputado estadual Marcelo Freixo, que liderou um inquérito parlamentar estadual sobre milícias em 2008. Esse inquérito resultou na prisão de mais de duzentos policiais e funcionários públicos. Infelizmente, mas não surpreendentemente, as milícias só se expandiram desde então. De acordo com um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense e do rastreador de violência Fogo Cruzado, a área urbana controlada pelas milícias cresceu 387% desde 2006, com mais de quatro milhões de pessoas no Grande Rio vivendo sob seu controle político coercitivo .
Como a própria Franco apontou em sua dissertação de mestrado de 2014, a expansão das milícias deve ser entendida em relação à ocupação e militarização das favelas por meio das Unidades de Polícia Pacificadora. No início dos anos 2000, antes da Copa do Mundo de 2014 no Brasil e dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio, “os legisladores começaram a administrar a cidade como um negócio . . . transformar o espaço urbano em um bem”.
Em sua tese, Franco escreveu que o Estado
[did] não priorizar as operações militares de ocupação na mesma medida em toda a cidade. O melhor exemplo disso é a Zona Oeste, como exceção. Eliminar as milícias, principalmente nessas áreas de considerável concentração de agentes do Estado agindo ilegalmente e em contínuo confronto, não justificava uma ocupação massiva da cidade, com a ocupação militar desses territórios. Ao contrário, nas áreas valorizadas da cidade no centro e sul e naquelas consideradas para Unidades de Polícia Pacificadora, você tem uma ocupação de territórios com “barreiras acústicas” e o Exército Nacional, ambos implantados na Maré.
As favelas – como a Maré, onde Franco nasceu e cresceu – há muito tempo são os “laboratórios” de campanhas de segurança pública que visam os residentes da classe trabalhadora negra e parda do Brasil, fechando os olhos para a teia de violência e extração que existe entre o estado e o para-estado criminoso das milícias. Refletindo sobre a vida de Franco criticando o violento e racista estado brasileiro por dentro, Gizele Martins (ativista, jornalista comunitária, moradora da Maré e autora do livro Militarização e censura: a luta por liberdade de expressão na favela da Maré) destacou que:
[Franco] sempre esteve à frente dessas questões. Lembro que em 2018, quando todo o Rio de Janeiro sofreu a intervenção militar, ela era relatora da Câmara Municipal. Não é por acaso o que aconteceu com ela. Uma pessoa super crítica, que lutou pelo direito à vida das favelas e favelados, da população negra. Tentaram silenciar uma voz significativa que nos representava.
As milícias não eram um alvo específico do trabalho de direitos humanos de Franco – ela falou muito mais contra a violência do estado do que contra a paraestatal – mas sua morte mostra o quão profundamente os dois conspiram.
Como as milícias – como as gangues de tráfico de drogas às quais pretendem se opor, mas frequentemente fornecem e armam – estão divididas em facções concorrentes que disputam o controle territorial do Rio, assassinatos políticos como o de Franco são geralmente executados por assassinos mais especializados. Acredita-se que o assassinato de Franco tenha sido obra do Escritório do Crime. Essa obra é altamente lucrativa, permitindo que Lessa viva no mesmo condomínio de luxo no bairro novo-rico da Zona Oeste da Barra da Tijuca que o próprio Bolsonaro chama de lar. Mas as conexões são mais profundas. O ex-chefe do Escritório do Crime era Adriano Magalhães da Nóbrega, morto em confronto com policiais na Bahia quando se escondia das autoridades na casa de um vereador filiado ao ex-partido de Bolsonaro.
De fato, a família Bolsonaro tem laços estreitos com da Nóbrega. Em 2005, como deputado federal, Bolsonaro fez um discurso na Câmara dos Deputados criticando a prisão de Nóbrega em relação à morte de um frentista. No mesmo ano, o filho mais velho de Bolsonaro, Flavio, usou seu cargo de senador estadual para premiar da Nóbrega uma das maiores honras do estado do Rio, a Medalha Tiradentes, enquanto ele estava na prisão. Flavio também empregou a esposa e mãe de da Nóbrega como parte de sua equipe parlamentar. O amigo de longa data de Jair, Fabricio Queiroz (sem parentesco com Élcio) também trabalhava como ajudante de Flavio e se escondeu na favela de Rio de Pedras controlada pela milícia quando estava fugindo da prisão por lavagem de dinheiro.
Através de sua presidência, Bolsonaro nacionalizou a ideologia violenta e gangster das milícias. A presidência de Lula terá que enfrentar um Congresso de extrema direita e com governadores bolsonaristas como o próprio carioca Claúdio Castro.
Com Bolsonaro fora da presidência, há alguma esperança de que haja progresso no caso de Franco. O ministro da Justiça de Lula anunciou que a Polícia Federal iniciou uma investigação própria sobre o assassinato. Anteriormente, a família de Franco havia se oposto à federalização do caso, citando a indiferença do então ministro da Justiça, Sergio Moro, à investigação. A investigação em nível estadual foi atolada por informações falsas e interferência policial. A falta de progresso, infelizmente, não é muito surpreendente. “Temos um Estado”, explica Martins,
que nos mata, que nos violenta, que não nos dá direito à moradia, que comete genocídio contra as populações negras e indígenas, e que continua sua histórica impunidade. Então o fato do assassinato de Marielle não ter resposta é mais uma representação do que temos sofrido historicamente.
O tempo fez pouco para perfurar a rede político-criminal depravada que permitiu, executou e continua a encobrir o assassinato de Franco. Toda uma geração de ativistas políticos, especialmente mulheres cis e trans negras inspiradas por seu exemplo e revoltadas com a injustiça de seu assassinato (comumente conhecidas como “as sementes de Marielle”), surgiram nos anos que se passaram desde o assassinato de Franco.
De forma poderosa, mas agridoce, a própria irmã de Franco, Anielle, também entrou na arena política. Em 11 de janeiro, em posse histórica conjunta com a ativista indígena Sônia Guajajara (ministra dos povos indígenas), ela assumiu o cargo de ministra da igualdade racial. Assim como Marielle havia feito em artigo escrito em 2017, em seu discurso de posse, Anielle apontou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como o início da recente virada autoritária do Brasil para uma “política de morte”.
A posse conjunta de Franco e Guajajara também serviu como repúdio aos ataques de 8 de janeiro à capital por partidários de Bolsonaro: “O mesmo projeto que permitiu a destruição das janelas deste palácio é o projeto que mata, todos os dias, pessoas como o catador Dierson Gomes da Silva, da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro.” Invocando sua irmã e honrando seus sonhos compartilhados por um Brasil melhor, a Ministra Franco apresentou um novo projeto para o Brasil no governo Lula:
Estamos aqui porque temos um novo projeto nacional: um projeto de país onde uma mulher negra possa acessar e participar dos diversos cargos de decisão da sociedade, sem ser interrompida, violentada ou ter sua vida dilacerada com cinco tiros na cabeça . . . .
Temos um plano nacional e esperamos poder contar convosco para a sua construção. E é por isso que faço este pedido a toda a população brasileira: caminhe conosco.
Se tal nação pode ser construída dependerá da força da esquerda multirracial do Brasil e sua capacidade de expurgar o estado de autoritarismo.
Source: https://jacobin.com/2023/03/marielle-franco-assassination-five-year-anniversary-brazil-far-right-militias-organized-crime