Em meio a um evidente jogo de interesses políticos, econômicos e financeiros – envolvendo grupos de comunicações e multinacionais – a organização Repórteres Sem Fronteiras defende, estranhamente, os golpistas
Maurice Lemoine – (01/08/2002)
Andrés Mata (diretor de El Universal); Miguel Enrique Otero (presidente de El Nacional); Gustavo Cisneros, Carlos Bardasano e Marcel Granier (respectivemente presidentes do Grupo Cisneros, da Venevisión e da Radio Caracas Televisión, da RCTV); David Natera (presidente do Bloco de Imprensa Venezuelano); Alberto Federico Ravell (diretor da Globovisión); Patricia Poleo, Ibeyise Pacheco, Marta Colominas (jornalistas)… Os autores do golpe da mídia na Venezuela viajam bastante ao exterior para denunciar o presidente Hugo Chávez e as “perseguições” de que dizem ser vítimas.
No dia 18 de março, por ocasião de sua reunião semestral em La Romana (República Dominicana), a Sociedade Interamericana e Imprensa (SIP) ovacionou seus esforços “em manter o pouco que (lhes) resta de liberdade de expressão”. Convidado especial dessa grande cerimônia (sem dúvida para garantir a objetividade), o ex-presidente norte-americano William Clinton declarara anteriormente: “Hugo Chávez está num beco sem saída.” O que autorizou a SIP a qualificar o presidente venezuelano de “fascista”.
Para entender estranhas “sinergias”
Uma declaração de William Clinton – “Hugo Chávez está num beco sem saída” – autorizou os donos dos jornais a qualificarem o presidente de “fascista”
Sobre o assunto, ela sabe do que fala. O vice-presidente da comissão executiva dessa associação de proprietários de meios de comunicação não é senão Danilo Arbilla. Uruguaio, Arbilla atuava em seu país como censor, no Centro de Difusão de Informação, na época em que, sob a ditadura militar (1973-1985), foram fechados os jornais Extra, Ya, Eco, El Popular e Marcha… Quanto ao representante da SIP na Venezuela, seu nome é Andrés Mata, proprietário do diário conservador El Universal.
A versão dos fatos difundida pelos órgãos de imprensa locais é encontrada freqüentemente, de forma idêntica, em várias meios de comunicação internacionais: New York Times, Washington Post, CNN, El Tiempo, Rádio e TV Caracol, RCN (que praticam o mesmo tipo de desinformação a respeito de seu próprio país, a Colômbia) etc. Entre eles, destaca-se particularmente o diário espanhol El País1. Sobre um fundo de interesses econômicos e financeiros, pode-se às vezes compreender a razão de tais “sinergias” 2.
Uma intervenção suspeita
Pretendendo “defender o direito de informar e de ser informado”, a organização RSF ignora o papel não tão oculto dos donos dos meios de comunicação
Proprietário de El País, o grupo Prisa possui 19% das ações da Rádio Caracol, cujo acionista majoritário, o poderoso grupo colombiano ValBavaria, tem como principal sócio Julio Santo Domingo (o homem mais rico da Colômbia) e… o grupo Cisneros que domina a indústria das comunicações na Venezuela. Encabeçando o Prisa, Jesús Polanco também preside a Sogecable, uma firma ligada à empresa norte-americana DirecTv, que tem como um de seus principais acionistas esse mesmo grupo Cisneros… Tornando ainda mais estreitas as relações, um acordo estaria em vias de ser assinado entre o Prisa (Polanco) e ViaDigital (Cisneros).
Pretendendo “defender o direito de informar e de ser informado”, conforme o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a organização corporativa Repórteres Sem Fronteiras (RSF) ignora deliberadamente o papel não tão oculto dos proprietários dos meios de comunicação. Mas a organização não tem escrúpulo algum em fazer do governo de Chávez – que jamais atentou contra as liberdades – um de seus alvos privilegiados. Legitimamente, já que, considerando-o restritivo e suscetível de terminar em censura, ela se preocupa com o artigo 58 da Constituição venezuelana (nunca invocado até hoje), relativo ao direito dos cidadãos “a uma informação verídica, oportuna e imparcial”.
Dois pesos, duas medidas
“Hugo Chávez assinou sua renúncia durante a noite, sob pressão do exército”, afirmou a RSF num comunicado. É sabido que Chávez nunca “renunciou”
A atitude da RSF, entretanto, desperta questionamentos quando a organização pede ao presidente “que ponha fim aos seus ataques virulentos contra a imprensa, que fazem desta última um alvo da vingança popular3”, sem se perguntar minimamente sobre a atitude mentirosa e a falta de ética por parte dos meios de comunicação em questão. “Se é legítimo que o governo faça ouvir pontualmente sua voz em circunstâncias excepcionais”, escreve a RSF, denunciando sem pesquisa nem distanciamento crítico o “recurso abusivo” à requisição de tempo de transmissão em cadeia nacional pelo governo nos dias 10 e 11 de abril, “de modo algum isso poderia justificar a interrupção de programas televisionados ou radiofônicos por cerca de trinta vezes em dois dias.” Mesmo quando eles participam ativamente de um golpe de Estado?
No dia 12 de abril, a RSF pediu às “autoridades” (Quais? Tratava-se, então, de um poder ilegítimo!) “que façam uma profunda investigação sobre os tiros de que foram vítimas quatro jornalistas” (um foi morto), que “garanta a segurança dos jornalistas considerados próximos do ex-(sic)presidente” e, comentando os fatos com grande leviandade, fala “da repressão de que era objeto a manifestação da oposição”. Retomando palavra por palavra a versão da imprensa venezuelana, o comunicado conclui: “Recluso no palácio presidencial, Hugo Chávez assinou sua renúncia durante a noite, sob pressão do exército”. Sabe-se que Chávez nunca “renunciou”, que ele foi preso e encarcerado numa fortaleza militar. Nenhuma palavra, em contrapartida, sobre a repressão exercida pelos golpistas sobre vários jornalistas que trabalhavam para meios de comunicação alternativos e comunitários.
Uma tribuna para os cidadãos
Esquecendo, apesar de algumas declarações de princípio, a defesa do direito “de ser informado” 4, a RSF recomenda à Venezuela um plano de informações digno daquele de El Mercúrio, diário chileno amplamente implicado no golpe que terminaria com a derrubada e a morte de Salvador Allende.
Neste sentido, só se pode parabenizar o surgimento de uma organização, a Media Watch Global, nascida no último Forum Social Mundial de Porto Alegre. Alheia a qualquer corporativismo, essa instituição pretende – na Venezuela, com em outros lugares – velar pelo pluralismo e pelo equilíbrio da informação e constituir uma tribuna para os cidadãos diante dos excessos da mídia e suas manipulações.
(Trad.: Fabio de Castro)
1 – Um “Prêmio Especial de Desinformação” deveria ser atribuído à sua correspondente em Caracas, Ludmila Vinogradoff. No dia 1º de maio de 2002, ela conseguiu a proeza de detectar “apenas 3.600 pessoas” numa manifestação de várias dezenas de milhares de adeptos do presidente Chávez.
2 – O grupo de telecomunicações espanhol Telefonica pretende ampliar sua influência, tanto na Venezuela quanto na Colômbia; por seu lado, o grupo petrolífero Repsol (espanhol) também está muito interessado na privatização da PDVSA e no petróleo colombiano. Conseqüência direta desse jogo de interesses: o reconhecimento de Pedro Carmona por José Maria Aznar, que também dá seu apoio ao Plano Colômbia.
3 – Repórteres Sem Fronteiras, Paris, 8 de janeiro de 2002.
4 – Dedicando-se a uma investigação profunda de ações repressivas (contra golpistas) e às ameaças proferidas por membros da oposição contra meios de comunicação alternativos, Repórteres Sem Fronteiras esclareceria, no dia 18 de junho, numa mensagem enviada à Teletambores: “O papel de nossa organização é o de defender a liberdade de imprensa, e não o de avaliar o uso que é feito dela.”