Itália 2023
Uma carta para meu pai
Bárbara Balzerani
Já aconteceu antes e acontecerá novamente.
Depois da derrota daquela revolução em que nunca acreditastes, sem nada que a impedisse, o ódio dos senhores desencadeou-se sobre os novos migrantes que falam dialectos de terras ainda mais a sul, acorrentados imediatamente após decomporem-se em escravos, por um número insuficiente de grau de civilização.
E as máquinas foram levadas para outro lugar onde a engenhosidade de fazer é ainda mais humilhada, onde o trabalho recebe ainda menos e onde a energia de que necessitamos para gerir a nossa opulenta democracia continua a ser roubada.
Guerras, miséria e roubos, nunca tão devastadores. A nova ordem mundial só pode viver excluindo o conflito de armas exploradas e intercambiáveis em diferentes gradações.
Mas de um Sul ainda mais vasto poderá vir o domínio de grandes ideias e a solução de uma ferramenta equipada com aquela enorme oficina subterrânea que supera a tecnologia moderna pela força de armas e meios obsoletos.
Ferramentas magníficas para sabotar o atual mecanismo reprodutivo da morte.
Já aconteceu, segundo a prática e a tradição.
E isso acontecerá novamente.
Basta abrir um pouco mais os olhos.
Das muitas promessas de viagens que teríamos feito juntos, o que me resta são as vossas ricas antecipações e, em antecipação, as viagens de alguns quilómetros.
Agora, para não deixar nada pendurado, posso levar você para explorar um mundo um pouco maior.
Mesmo que minhas histórias não sejam como seus mapas de fuga individuais, elas são boas para respirar a dureza de poucas opções.
Você sabe que eu não fico animado a menos que haja um “nós” no meio.
E gosto de pensar que talvez vocês gostassem das novas formas de resistência e que, com o tempo, pudéssemos encontrar um olhar comum.
Nós dois vamos vencer.
Eu ainda me sentiria como sua filha favorita e que você descanse em paz.
Não tenho uma concepção universal de proporções, que se estabelece quando se ultrapassa o limite de sentido que mantinha a parte humana da história.
Tudo o que tenho a oferecer são focos de conflito que estão reparando os danos causados pelos fogos de artifício em que estamos.
Questões extraídas de experiências concretas modeladas no fogo das lutas, ao invés de teorias completas para um mundo egocêntrico que não existe mais.
Os únicos que formulam uma ciência social da qual somos órfãos.
Levaria você a lugares onde as formas tradicionais de atividade humana foram ressuscitadas em comunidades que voltaram à escola de aprendizagem no campo, aprendendo com os mais antigos os ofícios que resistiram ao conhecimento excessivo das máquinas. Para encontrar novas soluções e novas ferramentas.
Lugares caracterizados pela violência de um poder que não permite a revogação do seu modelo de vida e de não-vida, por mais periféricos que sejam.
As guerras em curso contra as minorias que estão a ser expulsas da cabana que parecem destinadas a ruir são aquelas em que novas formas de resistência são testadas.
Quase sempre têm no rosto e na língua o estigma do desperdício do mundo e a força das grandes ideias cheias de história que se apresentam.
Gosto de pensar que você poderia ter sido um professor magnífico, capaz de trocar o cuidado da caixa de ferramentas com a narrativa do sentido da vida reumanizado.
Poderíamos fazer a primeira viagem real juntos, através do oceano.
Mas valeria a pena porque talvez você se convencesse de que trabalhar numa fábrica nem sempre é um castigo divino.
Seguindo os passos de muitos de nós, imigrantes para escapar da fome e das catástrofes das guerras europeias, faremos uma viagem de conhecimento.
Para entender algo que nos preocupa e pode nos ajudar a fixar o rumo dos nossos objetivos. Uma saída para deixar a indústria como fonte de lucro, além do trabalho de campo desnecessário e da aceitação das condições de trabalho, sejam elas quais forem.
Não deveríamos ter arrependimentos, mas acabar com o inferno do trabalho subserviente antes que a crise dos patrões se torne a norma para um darwinismo social cada vez mais desesperado.
Essa não é uma maneira de dizer isso.
Neste nosso lindo país, nunca aconteceu que as empresas paguem pela sua responsabilidade social.
Apesar do generoso financiamento público e das suas leis de mãos livres.
Sob um governo excluído.
Apenas exceções quando a luta deu frutos e a vida deu prioridade à normalidade de morrer pelo trabalho.
Isso aconteceu e continuará acontecendo.
Os proprietários desmontam fábricas peça por peça e transformam fábricas abandonadas em golpes sem poupar.
E parece que morrer, ficar incapacitado, adoecer, são os subcontratos.
A produção, como se fosse um ser vivo, tem proteções muito maiores.
Os gritos das pessoas queimadas numa fábrica de Turim do maior grupo siderúrgico europeu que está a ser desmantelada, foram chamados de resultado de um acidente, daqueles que sempre podem acontecer, se quisermos desfrutar das delícias do mercado.
Aquelas que definitivamente acontecem colocando um motorista bêbado ao volante de um carro de corrida.
E embora ainda se pudesse sentir o cheiro da carne queimada, as cúpulas confederadas exigiram moderação nas reparações em nome do investimento estrangeiro.
Moderação, palavra mágica já que a produção foi declarada bem comum pela concessão sindical.
Vale uma vida antes do benefício, na era do ser humano reduzido a uma aguardente da economia, substituível a bom preço.
Sair de casa de manhã para ir trabalhar
É um risco que cada um corre para si, envolvendo rotas de fuga precárias e nenhum funeral de Estado.
Mesmo quando se certifica que, na combustão de fogões assassinos, o produto acabado se chama câncer, ele cospe junto com a fumaça das altas chaminés.
Ou você morre de trabalho ou de fome.
Uma escolha realmente miserável que fecha qualquer busca por alternativas em torno de mesas de concentração que parecem jogos fraudados onde vencer é sempre o melhor.
Aquele que é obrigado a trabalhar é um morto-vivo, para quem mais cedo ou mais tarde um revés trará a conta.
Um massacre
Não vale nem greve geral, o país já está atrasado nas contas.
Fonte: https://argentina.indymedia.org/2023/09/05/italia_barbara-balzerani-una-carta-a-mi-padre-por-un-viaje-a-traves-del-oceano-hacia-un-sur-mas-amplio/