Buenos Aires, Argentina – Dias depois de conquistar a corrida presidencial da Argentina, o autoproclamado anarco-capitalista Javier Milei chegou aos degraus da Casa Branca, pronto para se reunir com um importante conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos.
Sua rápida viagem a Washington, DC, foi mais do que uma volta de vitória. Sinalizou os planos de Milei para um grande realinhamento da política externa da Argentina – em direcção aos EUA e a Israel e longe da China e dos parceiros regionais de esquerda.
Essa mudança poderia tornar a Argentina algo estranho na América Latina. À medida que a região tenta livrar-se das divisões da era da Guerra Fria, os especialistas alertam que Milei pode abraçar fortes divisões políticas entre direita e esquerda.
“O que vimos na campanha foi um candidato com convicções ideológicas muito fortes, muito intensas, com uma retórica que de certa forma lembrava a Guerra Fria, falando de países comunistas”, disse Tomás Múgica, cientista político e professor de estudos internacionais. relações na Universidade Católica da Argentina.
Como candidata, Milei atacou a China, um dos principais destinos das exportações agrícolas da Argentina, comparando o país a um “assassino” e dizendo que os seus cidadãos não eram “livres”. Ele até ameaçou congelar as relações com o país devido ao governo do Partido Comunista.
Milei também trocou farpas com o presidente de tendência esquerdista do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, a quem rotulou de “comunista raivoso” e “corrupto”. O Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina.
Idéias radicais para renovar a sitiada economia argentina têm sido há muito tempo o trunfo de Milei. Ele fez campanha pela dissolução do Banco Central do país e pelo abandono do peso argentino em favor do uso do dólar americano como moeda, num esforço para conter a inflação galopante.
Mas os críticos dizem que as ambições domésticas de Milei podem ser restringidas pela presença modesta do seu partido no Congresso Nacional. Na política externa, porém, espera-se que Milei tenha mais influência. Assim que ele assumir o cargo no domingo, o Ministério das Relações Exteriores responderá diretamente a ele.
Os primeiros sinais indicam que Milei pode estar disposto a cumprir sua campanha.
Na semana passada, a escolhida de Milei para ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, confirmou que a Argentina não entraria no BRICS, um bloco de economias emergentes nomeado em homenagem aos seus cinco membros: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A Argentina deveria aderir em 1º de janeiro.
Essa decisão foi um “tapa na cara” da China e do Brasil, segundo Jorge Heine, professor da Universidade de Boston e ex-embaixador do Chile na China. Ambos apoiaram a entrada da Argentina no grupo.
Mas embora a presidência de Milei represente um revés para a relação da Argentina com esses dois países, Heine prevê que dará “um novo impulso ao movimento global de extrema-direita”.
Aqui estão três mudanças principais nas relações externas esperadas sob Milei:
Reavaliando as relações com a China
No final de uma visita à China este ano, o ministro da Economia, Sergio Massa – rival de esquerda de Milei à presidência – brincou que o seu país deveria ser rebatizado de “Argenchina”.
A piada ilustrou os laços estreitos que o governo cessante cultivou com Pequim.
Só no último semestre, a Argentina aderiu à Iniciativa Cinturão e Rota da China, um programa de investimento estrangeiro, e expandiu um acordo de swap cambial que ajudou a impulsionar a sua economia.
A China é o segundo maior parceiro comercial da Argentina e um grande investidor nos setores de energia e lítio. Mas a retórica linha-dura de Milei pode colocar esses relacionamentos em perigo.
“Provocar os chineses não é uma boa ideia”, disse Heine. “Isso tem consequências.”
A equipa de Milei argumentou que a Argentina pode desfazer os seus laços diplomáticos com a China, evitando ao mesmo tempo um impacto negativo na sua indústria exportadora. Mas Heine está cético.
“É uma ilusão pensar que podemos não ter relações políticas mas ainda assim ter relações económicas”, disse ele. “No caso da China, não funciona assim.”
Durante uma coletiva de imprensa após a eleição de Milei, o Ministério das Relações Exteriores da China alertou a Argentina que romper os laços seria um “erro grave”.
E a Argentina já sofreu um retrocesso nas medidas que tomou contra a China no passado. Em 2010, quando o seu governo acusou a China de minar as regras anti-dumping – concebidas para manter preços justos no comércio internacional – a China respondeu proibindo a importação de óleo de soja da Argentina, um golpe crucial para a sua economia.
Um governo Milei poderia provocar retaliações semelhantes se tomasse medidas enérgicas contra a China.
Ariel González Levaggi, membro do conselho executivo do grupo de reflexão regional CRIES, disse que Milei pode, por exemplo, retirar o apoio governamental de controversos projectos de infra-estruturas financiados com fundos chineses. Os críticos alegaram que alguns dos projetos, incluindo uma estação espacial dirigida por militares chineses, comprometem a soberania argentina.
Em geral, porém, os especialistas esperam que Milei siga o exemplo do ex-presidente de extrema direita do Brasil, Jair Bolsonaro, que também falou duro com a China, mas manteve em grande parte o status quo.
Milei já suavizou sua retórica, agradecendo publicamente ao líder chinês Xi Jinping em mídia social para uma carta de felicitações após a eleição.
“Envio-lhe os meus mais sinceros votos de bem-estar do povo da China”, escreveu Milei em resposta.
Um abraço total dos EUA
O antecessor de Milei, o presidente Alberto Fernández, foi eleito em 2019. Chegou ao poder como parte de uma “maré rosa”: uma onda de líderes de esquerda que varreu a América Latina.
Muitos membros da “maré rosa” rejeitaram os esforços dos EUA para moldar a política na região, procurando em vez disso alternativas – como a China – à liderança e ao poder económico americanos.
Mas espera-se que Milei rompa com essa tendência. Durante a campanha, ele disse repetidamente que seguiria uma política externa alinhada com os EUA e o “mundo livre”.
Essa seria uma “grande oportunidade” para os EUA, disse González Levaggi.
“Haverá um governo que se declarará abertamente amigo dos EUA. Isso não é algo que costuma acontecer” na Argentina, explicou.
Espera-se também que a promessa de Milei de controlar os gastos do governo repercuta entre as autoridades norte-americanas, que vêem a estabilidade na América Latina como uma bênção para os seus interesses.
“Basicamente, os EUA não querem que a Argentina se torne um problema”, disse Múgica, o cientista político.
“Os EUA procuram estabilidade na Argentina porque, no final das contas, é um parceiro democrático, é um exportador de produtos alimentares à escala global e pode tornar-se um ator importante no setor energético.”
Por seu lado, Milei vê os EUA como um pilar da sua agenda económica. Os EUA são o maior acionista do Fundo Monetário Internacional e Milei precisará da sua ajuda para colocar novamente em funcionamento um programa de empréstimos de 44 mil milhões de dólares.
Com seu cabelo rebelde, personalidade grandiosa e currículo político frágil, Milei também evocou comparações com líderes de direita dos EUA, como Donald Trump.
Mas Múgica disse que a recente viagem de Milei a Washington envia uma mensagem de que ele e os seus aliados estão dispostos a cooperar tanto com os democratas como com os republicanos.
“Eles tentaram mostrar que podem se dar bem com [Democrats] e que não são simplesmente imitadores de Trump na América Latina”, disse ele.
Um ponto alto para as relações Argentina-Israel
A eleição que levou Milei à vitória ocorreu contra a eclosão da guerra em Gaza, um estreito território palestino ao longo do Mar Mediterrâneo.
Em 7 de Outubro, o grupo palestiniano Hamas liderou um ataque contra Israel, matando 1.200 pessoas e levando outras centenas de prisioneiros. Israel respondeu lançando uma ofensiva militar contra Gaza.
Mais de 16 mil palestinos foram mortos nos meses seguintes, com especialistas das Nações Unidas alertando para um “grave risco de genocídio”.
A terrível crise humanitária em Gaza levou os líderes latino-americanos a criticar fortemente as tácticas de Israel. Lula do Brasil chamou a ofensiva militar de “genocídio”. Seu homólogo na Colômbia, o também esquerdista Gustavo Petro, chamou isso de “massacre”.
No entanto, nenhuma crítica desse tipo veio de Milei. Em vez disso, nas últimas semanas da sua campanha, ele era conhecido por agitar a bandeira israelita em comícios de campanha. O seu apoio fervoroso provavelmente fará da sua administração o principal aliado de Israel na região.
“Na América Latina, muitos países como Brasil, Chile, Colômbia, Bolívia e México criticaram fortemente Israel”, disse Heine, o ex-embaixador do Chile. A postura de Milei “é uma posição dissonante”.
A sua aceitação de Israel coloca-o mais alinhado com os líderes da América do Norte e da Europa, muitos dos quais apoiaram a campanha militar de Israel, explicou Heine. “Houve uma fissura importante criada entre o norte global e o sul global.”
Milei prometeu seguir os passos de Trump e transferir a embaixada de seu país em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, uma medida controversa. A cidade foi reivindicada por israelenses e palestinos.
Ele também prometeu declarar o Hamas uma “organização terrorista”. Vinte e um dos cativos capturados em 7 de outubro eram argentinos.
A comunidade judaica da Argentina, já a maior da América Latina, poderá em breve contar com um presidente entre os seus membros. Milei está em processo de conversão. Ele se tornaria o primeiro chefe de estado judeu da Argentina.
Fonte: www.aljazeera.com