Rio de Janeiro, Brazil – O sobrinho de Cosme Felippsen tinha 17 anos quando foi morto pela polícia militar brasileira em um beco do Rio de Janeiro apelidado de Faixa de Gaza.
“Quase todas as favelas do Rio têm uma área que os moradores chamam de Gaza”, disse Felippsen, apontando para os buracos de bala ao longo das paredes dos becos. Os moradores usam o nome há pelo menos 15 anos, acrescentou. “Ele designa a área onde a maior parte dos tiros está concentrada em um determinado momento.”
O bairro onde morreu o sobrinho de Felippsen, José Vieira, em 2017, chama-se Morro da Providência. É uma das centenas de comunidades empobrecidas — ou favelas — espalhadas pela cidade.
Ativistas e moradores dizem que a violência que testemunharam nas favelas lhes deu uma visão única sobre a guerra urbana que se desenrola atualmente em Gaza, um território palestino sob cerco israelense. E os paralelos que percebem os motivam a agir.
“Militarização, grupos armados executando habitantes – muitas coisas que acontecem na Palestina também acontecem nas favelas do Rio de Janeiro”, disse Felippsen, político local e guia turístico especializado em história negra.
Grupos de esquerda, alguns dos quais têm ligações com as favelas do Brasil, organizaram protestos em todo o país desde o início da guerra Israel-Hamas, em 7 de outubro.
Nas semanas seguintes, mais de 13 mil palestinianos em Gaza foram mortos no meio de uma campanha de bombardeamentos israelita e de um bloqueio que cortou o fornecimento essencial ao território densamente povoado. Cerca de 1.200 israelenses foram mortos nos ataques do Hamas que deram início à guerra.
Especialistas da ONU alertaram que o povo palestino corre “grave risco de genocídio”.
Adriana Odara Martins, que mora na Baixada Fluminense, periferia do Rio, estava entre os manifestantes que pediam um cessar-fogo em frente ao consulado local dos Estados Unidos em outubro.
A sua comunidade, explicou ela, era frequentemente alvo de operações policiais e encontrou as suas experiências reflectidas na recente cobertura mediática de Gaza.
“Estamos aqui solidários porque temos empatia. Sabemos o que é viver sob violência”, disse Martins, que faz parte do grupo feminista Articulação das Mulheres Brasileiras e coordenadora do Movimento Negro Unificado.
A polícia no Brasil matou mais de 6.400 pessoas no ano passado, 83% delas negras, de acordo com a organização sem fins lucrativos Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A violência é particularmente aguda nas favelas, ambientes urbanos densamente povoados onde a maioria dos residentes é negra ou mestiça.
Os palestinos e os moradores de favelas são comumente vistos como “populações racialmente subalternas”, disse Bruno Huberman, professor de relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Eles partilham uma história de repressão sistemática, expulsão das suas casas, confinamento em espaços segregados, subjugação e exploração, disse ele à Al Jazeera.
“Ambas as populações estão sujeitas a guerras infinitas: os palestinos à guerra contra o terror e as populações das favelas à guerra às drogas”, disse Huberman.
Embora hesitante em comparar a violência que afecta os dois grupos, Fatima Ouassak, uma cientista política, autora e activista francesa, disse que também notou semelhanças na forma como os residentes das favelas e os palestinianos eram tratados nos seus respectivos países de origem.
“Essas populações são levadas a se sentir ilegítimas onde vivem, como se não estivessem em casa ou não fossem bem-vindas onde estão”, disse ela à Al Jazeera. Este sentimento, acrescentou Ouassak, estendeu-se a outras comunidades da diáspora árabe e africana em lugares como a França.
As semelhanças percebidas levaram alguns movimentos sociais nas favelas a identificarem-se explicitamente com a luta palestina.
Todos os anos, desde 2016, ativistas no Rio organizam o “Julho Negro”, evento que reúne populações que enfrentam o racismo e a militarização para atividades e discussões.
A questão dos direitos palestinos aparece frequentemente nestes eventos. O Julho Negro deste ano incluiu um webinar de duas ativistas brasileiras – Gizele Martins e Thais Siqueira – que retornaram recentemente de uma viagem à Cisjordânia ocupada.
“Achei que éramos os únicos que sofriam nas favelas”, disse Martins durante o webinar. Moradora da favela da Maré, no Rio, ela visitou a Cisjordânia pela primeira vez em 2017. “Assim que cheguei lá, vi que tudo era muito parecido — mas muito mais tenso”.
Uma das semelhanças que ela apontou foi o muro de segurança que Israel construiu através das comunidades palestinas na Cisjordânia. Em agosto, o governador do estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, anunciou a construção de um muro na fronteira com algumas favelas, também em nome da segurança.
“Muro da vergonha! O muro do apartheid no Rio”, disse Martins no Instagram após o anúncio, evocando a barreira da Cisjordânia.
Mas a identificação entre os dois grupos tem limites. Mike, um manifestante pró-Palestina que se recusou a fornecer seu sobrenome, disse que se fala mais em apoio a Israel do que à Palestina na favela onde ele mora, Barreira do Vasco.
“Às vezes me sinto um pouco sozinho ao apoiar a Palestina”, disse Mike à Al Jazeera na manifestação em frente ao consulado dos EUA no Rio de Janeiro.
Nos últimos anos, as favelas têm visto um aumento do cristianismo evangélico, um movimento religioso que se identifica fortemente com Israel.
Embora o Brasil tenha a maior população católica do mundo, acredita-se que o evangelicalismo seja o grupo religioso que mais cresce. Aproximadamente 30 por cento da população se identifica como evangélica.
As favelas, em particular, são vistas como focos para o crescimento da igreja, à medida que os líderes religiosos alcançam os moradores empobrecidos com serviços sociais, como oportunidades de emprego e educação.
Guilherme Casarões, cientista político da Fundação Getulio Vargas, um think tank e universidade, explicou que os evangélicos são mais propensos a simpatizar com Israel devido à sua visão de que o país é um lugar sagrado a ser protegido.
“A ideia é que Jesus Cristo só regressará à Terra para salvar a humanidade quando o povo de Jerusalém se converter à sua palavra”, disse Casarões.
Essa visão, acrescentou Casarões, traduziu-se politicamente num “alinhamento incondicional com Israel”.
“Mesmo que haja algumas críticas ao assassinato de palestinos inocentes em Gaza, a visão predominante é que Israel tem o direito de se defender nesta batalha entre o bem e o mal”, disse ele.
Esse ponto de vista entra em conflito com a posição do atual presidente de esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva.
Ao longo do último mês, Lula criticou duramente o incansável bombardeamento de Israel na Faixa de Gaza, denunciando o derramamento de sangue palestiniano.
“Isto não é uma guerra. Isto é um genocídio”, disse Lula a jornalistas no Palácio Presidencial do Planalto, em Brasília, no dia 25 de outubro. Ele também usou um discurso nas redes sociais na terça-feira para chamar as ações de Israel de “equivalentes ao terrorismo”.
Nos seus dois mandatos anteriores, de 2003 a 2010, Lula foi igualmente franco na sua defesa dos direitos palestinos.
A maior democracia da América Latina apelou durante décadas a uma solução de dois Estados para o conflito, que permitiria a criação de um Estado palestiniano separado ao lado de Israel.
Em 2010, Lula deu um passo nesse sentido, reconhecendo a Palestina como um estado independente com base nas fronteiras de 1967. O governo israelita respondeu com uma declaração expressando a sua “tristeza e decepção” com a decisão.
Especialistas dizem que a retórica de Lula ecoa a de outros líderes latino-americanos de tendência esquerdista. A Bolívia cortou relações oficiais com Israel por causa da guerra em Gaza, enquanto o Chile e a Colômbia chamaram de volta os seus embaixadores em Tel Aviv para consultas.
Em contrapartida, os líderes latino-americanos de direita simpatizaram mais abertamente com Israel, segundo Casarões. Eles também tendem a desfrutar de mais apoio evangélico.
O ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro não conseguiu mudar o apoio de longa data do Brasil à solução de dois Estados, embora tenha feito declarações públicas negando que a Palestina fosse um país.
Quando Bolsonaro e Lula se enfrentaram na corrida presidencial de 2022, o voto na favela tornou-se fundamental, dada a estreita margem entre os dois líderes.
Os moradores das favelas constituem um importante bloco eleitoral. Estima-se que 16 milhões de pessoas vivam em áreas urbanas com poucos recursos, como favelas, e só no Rio de Janeiro, pelo menos um quarto da população vive em áreas consideradas favelas.
Lula acabou superando Bolsonaro na votação final. Nas semanas anteriores à eleição, a organização sem fins lucrativos G10 Favelas/Favela Diz descobriu que Lula tinha uma vantagem de sete pontos sobre Bolsonaro entre os eleitores da favela, com 38 por cento de apoio contra 31 por cento do líder de extrema direita.
Ainda não se sabe se a posição da política externa de Lula irá afectar esse apoio. Mas Huberman, professor de relações internacionais, disse que a economia e a qualidade de vida do Brasil são os maiores fatores que influenciam a votação.
Contudo, alguns defensores dos direitos palestinianos gostariam que Lula fizesse mais para resolver o conflito em curso.
Fransergio Goulart, coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial no Rio de Janeiro, disse ter observado a popularidade de Lula diminuindo entre seus colegas ativistas. Eles sentiram que o presidente de esquerda não estava a tomar uma posição suficientemente forte contra a ofensiva militar de Israel.
“Lula deveria se posicionar contra Israel e não fez isso”, disse Goulart.
Parte da questão são os laços contínuos do Brasil com a indústria de defesa de Israel. O Brasil há muito compra armamentos e veículos blindados de Israel para reforçar suas próprias capacidades de segurança.
Em 2013, por exemplo, o estado do Rio de Janeiro assinou um acordo com a empresa israelense Global Shield para a compra de veículos blindados para sua polícia militar, informou na época o jornal local Estadão.
E em outubro, a Polícia Militar de São Paulo apresentou metralhadoras Light Negev, calibre 7,62 mm, compradas da Israel Weapon Industries Ltd em 2020, informou a agência de notícias local Ponte.
Esse tipo de armamento tem sido utilizado nas favelas em nome do combate à violência das gangues.
“Durante anos, tecnologias militares testadas em palestinos foram usadas no Brasil”, escreveu Goulart num artigo em março, referindo-se aos esforços para reprimir gangues nas favelas antes de grandes eventos desportivos.
Huberman observou que os laços entre Israel e o Brasil se aprofundaram quando o Partido dos Trabalhadores de Lula estava no poder, particularmente na área de cooperação em segurança.
No mês passado, por exemplo, a Câmara dos Deputados do Brasil – com o apoio do Partido dos Trabalhadores – votou pela renovação de três acordos de cooperação com Israel, incluindo um para combater o crime organizado.
Isto cria uma contradição, disse Huberman, entre a posição de Lula relativamente às ofensivas militares de Israel e a sua aceitação de Israel como parceiro de segurança interna.
“Os palestinos pediram o fim das relações militares [between Brazil and Israel]”, disse Huberman, “porque não faz sentido o Brasil pedir paz, mas comprar armas israelenses que sustentam a ocupação”.
Fonte: www.aljazeera.com