Como a política de “tolerância zero” frente ao crime, o endurecimento das condições carcerárias e as restrições aos grupos pró-direitos humanos nas prisões criaram o ambiente ideal para que surgisse, em São Paulo, a maior organização criminosa do Brasil
João de Barros – (21/12/2006)
Três ondas de ataques noturnos à mão armada. Coquetéis molotov e bombas artesanais lançados contra delegacias de polícia e edifícios públicos, agências bancárias, supermercados. Mais de cem ônibus urbanos incendiados… Os 1004 ataques realizados em São Paulo pela organização criminosa denominada Primeiro Comando da Capital (PCC) em maio, julho e agosto deste ano foram de tamanha amplitude que, em alguns dias, paralisaram a cidade, centro econômico e financeiro do Brasil, uma das megalópoles mais povoadas do mundo com seus vinte milhões de habitantes. O comércio fechou, o trânsito parou, cinemas, teatros, restaurantes e bares cerraram suas portas. Em julho, dois milhões de pessoas ficaram sem transporte público de um dia para outro. As pessoas se trancaram em casa, aterrorizadas.
O balanço oficial dos três episódios contabiliza 34 policiais à paisana ou uniformizados e 11 sentinelas mortos, assim como 23 civis executados em represália por grupos de exterminação que estariam ligados à polícia de São Paulo.
Até o momento, este foi o episódio mais sangrento de uma guerra aberta que se dá desde a última década entre a organização criminosa (o “partido”, como a designam seus membros) e os poderes públicos do Estado de São Paulo. O PCC domina atualmente 130 das 144 unidades carcerárias daquele estado.
O PCC surgiu em agosto de 1993, em uma penitenciária de Taubaté, no interior do Estado de São Paulo. Um regime extremamente rigoroso: celas individuais, permissão de ficar ao ar livre apenas duas horas por dia, proibição de aparelhos de rádio e televisão, jornais, revistas, livros e visitas íntimas; banho frio, limpeza dos banheiros determinada pelos carcereiros e feita apenas quando o ar já é irrespirável; refeições que não merecem esse nome, pois são acompanhadas de baratas vivas… E se um presidiário ousar protestar em voz alta, será agredido por golpes com barras de ferro.
O diretor desse presídio, José Ismael Pedrosa, faz vista grossa para os maus-tratos infligidos pelos carcereiros. Tornou-se conhecido porque estava na direção do Carandiru, em 1992, quando se deu o famoso massacre de 111 presos, naquela penitenciária em São Paulo, por uma tropa de choque da Polícia Militar (Pedrosa foi assassinado 13 anos depois, em outubro de 2005, em uma emboscada atribuída ao PCC).
Na prática, violência. No discurso, fraternidade
Mas no dia 31 de agosto de 1993, em Taubaté, após um ano de reivindicações negadas, Pedrosa acabou autorizando um campeonato de futebol entre os detentos. Simplesmente o jogo programado entre o Comando Caipira – time de presidiários provenientes do interior do estado – e o PCC – nome adotado em oposição ao do adversário não aconteceu. Quando os dois times se encontraram na entrada do pátio onde ele se daria, o detento José Márcio Felício, o “Geleião”, com 1,90 m de altura, 130 quilos, segurou com as duas mãos a cabeça de um oponente e a girou feito um torniquete, destroncando-lhe o pescoço e matando-o. A briga só terminou depois da morte de outro preso, também pela mão de “Geleião”.
Foi então que, sabendo que seriam submetidos a represálias, “Geleião” e outros sete detentos selaram um pacto: “quem ofender um de nós, ofenderá a todos – somos o time do PCC, os fundadores do Primeiro Comando da Capital”. A “ideologia de irmãos” logo se espalhou em todas as penitenciárias.
“Geleião”, “Cesinha” (César Augusto Roriz da Silva), “Mizael” (Mizael Aparecido da Silva) dirigiram as primeiras ações do PCC, principalmente “Cesinha”, de temperamento muito violento e “Mizael”, que tem um nível intelectual superior ao do grupo. A ele se atribui a redação de um estatuto para a organização que se iniciava. Esse estatuto tem 16 artigos que o “filiado” deve respeitar religiosamente. O primeiro artigo estipula: “Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo para com o partido”. Os demais falam da “união contra as injustiças no presídio”, da contribuição dos que estão em liberdade para os “irmãos” presos, do respeito e da solidariedade entre os presos, da condenação por roubo, violentação e extorsão praticados entre os próprios presidiários, estipulando que a punição para o desrespeito a esses preceitos estabelecidos pode ser a morte. O documento termina com a seguinte exortação: “Conhecemos nossa força e a de nossos inimigos. Eles são poderosos, mas estamos preparados, unidos; e um povo unido jamais será vencido. Liberdade, justiça e paz!”
Batizados por um dos fundadores do “partido”, os novos participantes obedeceram diretamente às suas ordens. A organização desenvolveu-se rapidamente. Em menos de três anos, já dispunha de um exército de “generais” que difundem o estatuto, organizam a massa penitenciária em torno da confraria e punem os oponentes com a morte. A partir do batismo, os noviços se vêem comprometidos com o posto de “pilotos de raios” (as alas dos prédios em que se encontram as celas da penitenciária). Os “pilotos”, por sua vez, batizam os outros presidiários, qualificados como “irmãos”. Ninguém é obrigado a fazer parte da organização. Os simplesmente simpatizantes são denominados “primos”.
Surfando nas ondas da repressão e da mídia
Fruto da política repressiva dos últimos dez anos – aumento das longas penas, criminalização de pequenos delitos, diminuição das garantias de defesa –, apenas no Estado de São Paulo há 141 mil detentos: 124 mil nas unidades carcerárias (35% à espera de julgamento) e 17 mil nas celas de distritos policiais da capital do estado e do interior. Eles representam o dobro da capacidade de abrigar dos estabelecimentos.
Quase toda essa população a partir de então pertence ou é ligada ao PCC. Para comandar à distância a expansão, “Cesinha” e “Geleião” utilizaram telefones celulares, criando as primeiras “centrais” telefônicas da organização criminosa. Em todo o estado contam-se rapidamente com mais de 1.500 funcionando 24 horas por dia, suficientemente sofisticados para organizar teleconferências entre os “militantes” presos e os que estão em liberdade.
O governo de São Paulo somente percebeu a importância do telefone celular em 2001. Surpreendendo todo o país, houve a explosão de uma gigantesca rebelião provocada pela remoção de alguns presidiários para a assustadora penitenciária de Taubaté. Essa transferência rompia um dos pactos “assinados” entre os líderes do PCC e as autoridades do estado. Para evitar sublevações que acabariam colocando em evidência as condições medievais de presídios superpovoados, o governo tinha concedido algumas vantagens aos presos, reconhecendo implicitamente que todas as unidades carcerárias estavam sob o controle do “partido”.
A remoção do grupo de presos quebrava o pacto e a ordem de “virar” (sublevar) foi transmitida pelos celulares aos “pilotos” das penitenciárias. Em pouco tempo, 29 presídios, em 19 cidades e principalmente na capital, desencadearam uma rebelião de trinta mil presidiários. Transmitida ao vivo como um espetáculo, a sublevação garantiu definitivamente a celebridade do PCC e desnudou a degradação do sistema carcerário. O “partido” obteve, assim, o que queria: ser noticía de primeira página dos jornais no Brasil e no exterior.
As medidas tomadas pelo governo para evitar novas rebeliões revelaram-se desastrosas. Ao colocar os chefes em diferentes penitenciárias, em vez de enfraquecê-los, transformou-os em propagandistas das “vantagens” obtidas por presidiários pertencentes ao “partido”. Os adeptos multiplicaram-se. Atualmente, avalia-se em 50 mil o número de “filiados”.
Da defesa dos “irmãos” às redes mafiosas
Todavia, numa fusão de gêneros, o combate legítimo contra a opressão no interior do sistema penal paulista serve também de cobertura para um negócio mais lucrativo: o do tráfico de drogas, avaliado em 300 milhões de dólares por ano apenas para o “mercado” de São Paulo. Para gerenciar sua parte do bolo, a partir dos presídios, o PCC dividiu o estado em regiões que confiou aos “pilotos de rua”. Estes negociam com uma rede de traficantes do escalão intermediário, que agem a serviço dos “gerentes” dos chefes do negócio, os “patrões”.
Segundo o delegado Cosmo Stikovics Fiho, do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), “Esses patrões agem de maneira idêntica aos chefões mafiosos dos filmes. Eles somente dão as ordens, sem se envolverem diretamente. São pessoas de alta posição social, que circulam de BMW e Mercedes Benz, personalidades acima de qualquer suspeita. Se eu dissesse o nome de alguns desses suspeitos, você cairia para trás…”
Restabelecendo a calma em alguns bairros, em que pôs um fim às inúmeras guerras entre um grande número de bandos, o PCC não teve muita dificuldade para seduzir um grande número de jovens, revendedores de drogas que ganham no dia-a-dia a subsistência, que lutam para sobreviver no meio da pobreza. Mesmo que façam parte do nível mais baixo, sentem orgulho de pertencer a uma organização de tanto peso.
O comércio da droga é praticado também dentro dos presídios. Um preso da penitenciária de Hortolândia deu uma explicação: “Todo diretor sabe que a maconha é o grande sedativo do presidiário; ela lhe permite ’viajar’ e construir castelos de areia. Quando ela falta, a violência aumenta. É por isso que seu uso é tolerado”.
Por sua vez, outro preso elogia o PCC: “O número de mortes caiu porque ele controla os internos. Ninguém mata o outro sem autorização. Os celular e droga entram graças à corrupção e às visitas. E o PCC ajuda os que têm menos posse: dá cesta básica, paga o ônibus para as visitas que vêm de longe, sorteia bolas e bicicletas no dia das crianças. Quem faz isso? Só o partido”.
No entanto, ele se esquece de especificar que todo “filiado” é obrigado a pagar uma mensalidade. Tanto o que se encontra em liberdade quanto a família do que é preso. Para quem não cumpre a obrigação, a punição pode ser a morte. Pouco importa que ele não tenha tido oportunidade devido a ataques ou ao tráfico do qual ele se ocupa e que não tenha conseguido juntar a soma suficiente. O procurador Márcio Christino observa: “O PCC é onipresente. Manda nos presídios. Organiza fugas. Mata inimigos ou os obriga a se suicidarem. Comete atentados à bomba. Corrompe os representantes do poder público. Desafia as autoridades”.
“Marcola”, o suposto cérebro da rede
Um nome tornou-se mito no mundo do crime, nos meios policiais e na mídia: “Marcola” – apelido de Marco Willians Herbas Camacho, assaltante de bancos, condenado a 39 anos de prisão e suspeito de ter planejado a morte de um juiz corregedor em 2003. Discreto, é considerado um indivíduo culto – a lenda diz que ele leu mais de 2 mil livros – e jamais falou com a imprensa. Existem poucas fotos dele nos arquivos dos jornais e sabe-se apenas que fala bem quando, conduzido aos interrogatórios, está disposto a responder às perguntas.
Tanto a polícia quanto o Ministério Público consideram “Marcola” o “cabeça” da organização. Ele declara sistematicamente: “Não há provas de que pertenço ao PCC. Os que o afirmam são a imprensa e até mesmo os presos. Não sou chefe de absolutamente nada. Luto por meus direitos. Se a maioria dos detentos se reconhece em minha luta, não posso fazer nada.”
Com ou sem provas, ele vive sob Regime Disciplinar Diferenciado (RDD): cela individual de seis metros quadrados com uma pequena fresta para entrada de ar. Cama de cimento, vaso sanitário e chuveiro com ducha de água fria. No verão, a temperatura ultrapassa os 40 graus. Duas horas de sol por dia e duas horas para as visitas semanais de duas pessoas, sem contato físico, separado por grades, telas ou vidros. Nem rádio, nem televisão, somente a leitura é permitida.
Interrogado pelos deputados federais membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que se ocupa do tráfico de armas, segundo um deles, “Marcola” respondeu: “Você procura combater o crime aqui? Mas ele está do lado de fora! Vá combater o crime do colarinho branco. Não quero desrespeitá-lo, mas estou pagando pelo que fiz e pelo que dizem que fiz. Mas os deputados, sanguessugas remunerados e absolvidos? Os políticos jamais são responsabilizados por seus erros, por suas faltas, enquanto eu devo responder por isso.”
Uma resposta estúpida e uma alternativa
A repercussão dos acontecimentos de São Paulo levou o governo federal de Brasília a oferecer ajuda. Pensou-se até em enviar as Forças Armadas. O governador do Estado, Cláudio Lembo, do Partido da Frente Liberal (PFL), de oposição ao presidente Lula, recusou a proposta, declarando que a situação estava sob controle. Poucos meses antes do primeiro turno da eleição presidencial em 1º de outubro de 2006, aceitá-la seria uma demonstração da derrota de sua polícia que, com 150 mil homens, freqüentemente foi apresentada como a mais preparada do país. Ainda mais que o adversário do presidente Lula era simplesmente Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo…
Lembo não mudou de atitude depois que um repórter (Guilherme Poetanova) e um auxiliar-técnico (Alexandre Calado) da TV Globo, a cadeia de TV mais poderosa do país, foram seqüestrados no dia 12 de agosto de 2006. Em troca de sua libertação, o PCC exigiu que a Globo exibisse um vídeo em que um de seus membros, devidamente encapuçado, leria um manifesto exigindo “um tratamento dos presidiários digno, de acordo com a lei do cumprimento das penas”.
Apesar da recomendação contrária da polícia, a cadeia de TV aceitou, o vídeo foi transmitido, o jornalista e o técnico reapareceram poucas horas depois. Mas uma pergunta continua em suspenso: quando e como vai terminar essa guerra? Ninguém se arrisca a antecipar uma resposta.
As violações dos direitos humanos, as humilhações e o grande número de abusos, denunciados constantemente pelas famílias dos presos, permitem às gangues se apresentarem como defensoras dos presidiários. A socióloga Vera Malaguti Batista adverte: “Se não se discutem as questões de fundo, o problema pode ser reprimido com um banho de sangue, mas vai voltar daqui a um mês ou um ano. A polícia tem medo, as pessoas têm medo e têm razão de ter medo. Mas se a maneira absurda de enfrentar o problema continuar, isso vai se agravar. A violência, a raiva, o rancor aumentarão ainda mais. […] É preciso que as pessoas saibam quem é a população carcerária, como ela vive dentro dos presídios.”
Presente em Viena onde assistia à Cúpula da União Européia – América Latina, em maio de 2006, durante as rebeliões, o presidente Lula declarou que a raiz dos acontecimentos encontra-se na falta de investimentos sociais, acrescentando: “Custa menos ter uma criança na escola até a universidade do que um jovem em uma penitenciária”. A aplicação desse sábio preceito será um dos objetivos de seu segundo mandato?