Enquanto as negociações com as guerrilhas – Farc e o ELN – continuam em ponto morto, o governo Uribe, com apoio de Washington, recebe de braços abertos os paramilitares ligados a assassinatos de civis e a violação dos direitos humanos
Hernando Calvo Ospina – (01/04/2003)
Explicitamente apoiado por Washington, o governo colombiano anunciou, no dia 27 de novembro de 2002, o início de conversações com os paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). Um cessar-fogo começou a vigorar no dia 1° de dezembro com esta organização ligada ao narcotráfico e fortemente implicada na violação dos direitos humanos, ao passo que as negociações com a oposição armada nunca avançaram. Mas Estado e paramilitares sempre se deram bem na Colômbia.
Para derrotar as organizações de oposição armada que a ele se opõem há mais de 35 anos, o Estado colombiano empregou sempre a mesma estratégia: destruir ou neutralizar a base social que as apóia de modo real, potencial ou presumido. Verdadeiro terrorismo de Estado, a “guerra suja” baseia-se em dois pilares fundamentais: “As operações sigilosas ou clandestinas das forças militares e a criação de grupos paramilitares. Estes são o centro nevrálgico da contra-insurreição comandada pelo Estado e, de modo particular, por suas forças armadas1.”
O discurso do establishment
O alto comando militar envolveu caciques dos partidos Liberal e Conservador, latifundiários e chefes das máfias, no desenvolvimento das estruturas paramilitares
Tanto no interior quanto no exterior do país, alguns meios de comunicação e intelectuais de prestígio assumiram o discurso do establishment
Famoso por suas posições em defesa dos direitos humanos, o jesuíta Javier Giraldo não compartilha dessa visão: “Analisando os fatos a partir de uma perspectiva histórica”, declarou, durante uma conferência em Chicago em 17 de março de 2001, “não existe um ‘terceiro ator’ no conflito. Trata-se do braço clandestino e ilegal do Estado, que existe há várias décadas. Essa mesma perspectiva histórica nos impede de considerar o Estado colombiano como um ‘Estado de direito’.”
Destruição do inimigo interno
Após o triunfo da Revolução cubana, em 1959, os Estados Unidos passaram a desenvolver o conceito da Doutrina de Segurança Nacional, impondo-o ao Hemisfério Sul com o objetivo de evitar novos focos insurrecionais. A ideologia anti-comunista legitimou as forças armadas no papel de garantir as instituições e lhes deu uma tarefa essencial – se não única – a destruição do “inimigo interior”. Dessa maneira, consideradas as particularidades de cada país, a contra-insurreição se converte no eixo da segurança e “a destruição do ‘inimigo interno’ torna-se o objetivo, e até a finalidade suprema do Estado2”. Na revista das forças armadas da Colômbia (edição nº 6, de 1961), o ministro da Guerra escrevia: “O inimigo principal, aquele que justifica a ação das forças militares, encontra-se no interior e é dominado por ideologias inquietantes, de caráter marxista, alheias à cultura e à civilização ocidentais.” Um dos primeiros manuais sobre contra-insurreição definia, por sua vez, o “inimigo interno” de um modo simples e perigoso: “Todo indivíduo que, de uma maneira ou de outra, favoreça as intenções do inimigo, deve ser considerado um traidor e tratado como tal3.”
Em meados da década de 90 e por meio de “esquadrões da morte”, o terrorismo de Estado sumiu com cerca de 25 mil políticos e militantes de esquerda.
Em 1962, reproduzindo o que faziam no Vietnã, as forças especiais norte-americanas começaram a treinar na Colômbia brigadas antiguerrilha e a preparar especialistas em guerra psicológica e no envolvimento de civis em atividades paramilitares. Três anos depois, quando surgiram os primeiros grupos de insurrectos, o governo aprovou um decreto visando a “organizar a defesa nacional” (decreto 3398/1965), do qual consta um parágrafo que autoriza o Ministério da Guerra a “equipar grupos de civis com armamento normalmente reservado ao uso privativo das forças armadas”. Era o apoio jurídico às atividades paramilitares. Em 1968, o decreto se transformou em legislação permanente (Lei 48) que, em 1989, quando a Corte Suprema a declarou inconstitucional, foi substituída por outros.
Paramilitares a serviço do Exército
Em 1969, uma circular do Exército ordenou que se “organizasse a população civil segundo padrões militares” para que “apoiasse a execução de operações de combate” sob “o controle direto das unidades militares4”. Em 1976, a revista das forças armadas (edição nº 83) afirmava que “se uma guerra limitada, não convencional, implica demasiados riscos, então as técnicas paramilitares podem proporcionar uma maneira segura e útil que permita o uso da força para atingir os objetivos políticos”. O importante era que a imagem da instituição militar continuasse imaculada, o que foi feito. Foi nessa época que surgiu a Alianza Anticomunista Americana (Triple A) e outras siglas fantasmagóricas que começaram a ameaçar, assassinar e sumir com os opositores e críticos do sistema. Soube-se, posteriormente, que esses grupos eram estruturas especiais do serviço de inteligência militar, organizadas a partir da alta cúpula das forças armadas5.
No início da década de 80, as Farc e o governo de Belisario Betancurt concordaram em negociar uma solução para o conflito. As Farc participaram da criação de um partido político, a União Patriótica (UP), com o objetivo de atuar na via institucional e democrática. De imediato, recrudesceu a “guerra suja” contra dirigentes populares, sindicais e camponeses, o que não foi obra do acaso: “Os esforços na busca de uma solução não-violenta, ou política, para o conflito interno foram entendidos pelo alto comando militar como uma tática da ‘guerrilha comunista’ para a tomada do poder6.”
Genocídio político
Com a ajuda da CIA, foram reorganizados sistemas de inteligência que criaram redes de assassinos que identificam e matam civis suspeitos de ajudar as guerrilhas
Como ficou amplamente demonstrado pelos inquéritos oficiais, o alto comando militar envolveu caciques dos partidos Liberal e Conservador, assim como latifundiários e chefes das máfias, no desenvolvimento das estruturas paramilitares responsáveis pelos crimes. Surgia, dessa maneira, um dos casamentos de conveniência mais sanguinários e macabros da história política contemporânea do país. Em meio a isso, o exército produziria outro Reglamento de Combate de Contraguerrilla – o EJC-10, confidencial, datado de 1987 – no qual dividia as forças subversivas em duas: “a população civil insurrecta e os grupos armados”. Por conseguinte, “a população civil é um dos objetivos fundamentais das unidades do exército”.
Apenas a União Patriótica teve três mil de seus militantes e simpatizantes assassinados, entre os quais dois candidatos à presidência (Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo) e quase todos os seus prefeitos, vereadores e parlamentares. Diante desse “genocídio político”, foi apresentada uma ação criminal contra o Estado colombiano junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). No total, em meados da década de 90 e por meio dos “sindicatos de crime” ou “esquadrões da morte” (nomes que apenas ocultam a verdadeira face das ações paramilitares), o terrorismo de Estado sumiu com cerca de 25 mil políticos e militantes de esquerda. Nem mesmo a maioria das ditaduras do Cone Sul americano chegaram a esse extremo. Ironicamente, enquanto a oposição legal era massacrada, fortaleciam-se os movimentos de luta armada, o que levou o presidente Cesar Gaviria, atual secretário-geral da OEA, a criar uma “estratégia nacional contra a violência” em 1991.
Rede de assassinos legalizada
Em seu relatório de 1996, a organização norte-americana Human Rights Watch demonstra que, com a ajuda do Pentágono e da CIA, foram reorganizados “sistemas de inteligência que levaram à criação de redes de assassinos que identificam e matam civis suspeitos de ajudar as guerrilhas7”. Paralelamente a isso, o governo de Cesar Gaviria criou, em 1994 (decreto 3567, de 11 de fevereiro), as Associações Comunitárias de Segurança Rural – Convivir – que, teoricamente, serviriam para ajudar a Força Pública, coletando informações que permitissem evitar ações de grupos insurgentes e… paramilitares. A realidade demonstrou que as Convivir permitiram que se legalizassem as redes de assassinos a serviço do narcotráfico e dos latifundiários – seu principal objetivo era utilizar a população como biombo legal do movimento paramilitar8.
Quando o presidente Andrés Pastrana aceitou dialogar com as Farc e com o ELN, como já ocorrera em 1999, no governo Betancurt, a violência paramilitar recrudesceu
Diante das pressões internacionais, o governo de Ernesto Samper criou, em dezembro de 1997, sob a responsabilidade do ministro da Defesa, uma unidade especial para prender os chefes das Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), atual nome das organizações paramilitares. Após um ano, “os resultados brilhavam por sua ausência9”.O jesuíta Javier Giraldo conta que “os grupos de busca não só aprenderam a calcular sua chegada ao local dos crimes quando estes já estavam consumados e os criminosos a salvo, mas também a prender delinqüentes comuns, apresentando-os como paramilitares”.
No dia 7 de janeiro de 1999, o presidente Andrés Pastrana aceitou dialogar com as Farc, o movimento guerrilheiro mais poderoso do ponto de vista militar, e com o Exército de Libertação Nacional (ELN). Como já ocorrera durante o governo Betancurt, a violência paramilitar recrudesceu: enquanto naquele em 1999 haviam sido registrados 168 massacres (assassinatos de três pessoas ou mais), em 2000 o número passou para 236. O número de mortos nessas chacinas chegou a 1.226 vítimas, 297 a mais que em 1999.
Repressão ilegal e sem limites
Embora vagamente mencionado pelos meios de comunicação, há um outro “detalhe” que salta aos olhos: as estatísticas demonstram, de maneira inequívoca, que a diminuição dos casos de violação de direitos humanos por parte de militares se faz acompanhar pelo aumento de crimes imputáveis às AUC. A explicação para essa “estranha” coincidência, que nada tinha de novidade, foi dada pelo Defensor Público10: “Trata-se de uma nova forma de repressão, ilegal e sem limites, que alguns analistas acertadamente denominaram ‘violência por delegação’11.”
Há raros confrontos entre o exército e os principais assassinos da população civil – os paramilitares –, responsáveis, no mínimo, por 70% das vítimas.
Existe ainda outro “detalhe” que tem merecido pouca atenção: os raros confrontos entre o exército e os principais assassinos da população civil – os paramilitares –, responsáveis, no mínimo, por 70% das vítimas. As AUC contariam com cerca de 11 mil membros disseminados por todo o território colombiano, principalmente nas regiões estratégicas onde se encontram empresas multinacionais e se preparam mega-projetos econômicos. Segundo o chefe paramilitar Carlos Castaño, “as pressões exercidas pela comunidade internacional podem influenciar o alto comando, mas ninguém conseguirá jamais separar irmãos unidos contra um mesmo inimigo. Não tenho medo do exército, pois ele nada me pode fazer12”. A declaração é confirmada pelo relatório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, apresentado em 2001: “Esta agência é testemunha de declarações de autoridades do exército afirmando que os paramilitares não atentam contra a ordem constitucional e, conseqüentemente, não é função do exército combatê-los. (…) Já no caso das guerrilhas, o exército empreende grandes ofensivas, nas quais utiliza enormes recursos humanos e logísticos em operações que duram várias semanas. (…) Geralmente, o ataque a grupos paramilitares não passa de escaramuças menores, revista de algumas pessoas e detenções individuais e esporádicas.”
Tolerância norte-americana
Além de reconhecer que recebeu treinamento dos exércitos israelense e colombiano, Carlos Castaño admite que goza de relações de amizade com a alta hierarquia católica e com boa parte dos dirigentes políticos. Além disso, acrescenta que “os norte-americanos toleraram” sua organização criminosa (tardiamente classificada como “terrorista”, em setembro de 2001) e reconhece, sem rodeios, que as AUC são financiadas pelo tráfico de droga – inclusive, que o dirigem13. Nada disso impede que Carlos Castaño mantenha relações “amistosas” com a Drug Enforcement Administration (DEA, agência norte-americana de combate ao narcotráfico) e com a CIA, nem que participe abertamente – integrado ao grupo especial da polícia colombiana (Bloque de Búsqueda), que conta com a ajuda da CIA e da DEA – da perseguição a outros narcotraficantes, como a que terminou com a morte de Pablo Escobar, em 1993.
As AUC contariam com cerca de 11 mil membros disseminados por todo o território colombiano, principalmente nas regiões onde se encontram empresas multinacionais
As provas são tão abundantes que a Anistia Internacional solicitou ao governo norte-americano que lhe desse acesso a seus arquivos secretos. Não teve resposta. Com o sumiço ou a detenção dos chefes dos cartéis de droga de Medellín e Cali, e aproveitando-se do espaço que lhes proporcionavam as Convivir, os paramilitares assumiram o controle do processamento e exportação da droga. Em setembro de 1997, o Observatório Geopolítico das Drogas, sediado em Paris, informou que a maior parte da cocaína que chegava aos portos espanhóis, belgas e holandeses tinha origem nas regiões costeiras colombianas controladas pelas AUC. Surpreendentemente, pouco se insiste nisso, apesar de existirem provas bastante precisas de que as AUC são, atualmente, “um novo cartel mafioso, militarizado, (…) principal exportador de cocaína no mundo”, como afirma um senador14.
A ficção do Plano Colômbia
Restrito à repressão ao movimentos guerrilheiros e aos camponeses produtores de coca, o Plano Colômbia, apoiado por Washington, diz ter por objetivo a erradicação do tráfico de drogas. Nenhuma medida foi tomada contra os paramilitares. Como de costume, os norte-americanos contentaram-se com discursos, sem impor quaisquer exigências específicas ao governo colombiano15. Diante dos fatos, o jesuíta Javier Giraldo declarou: “A estratégia militar e repressiva empreendida no contexto desse plano contra o tráfico de drogas é pura ficção. Só serve para disfarçar a ingerência militar norte-americana no conflito político colombiano.”
De acordo com a estratégia contra-insurrecional, o movimento paramilitar deverá continuar tendo um papel fundamental no combate ao “inimigo interno”. No início de 2001, numa exaustiva reportagem efetuada para o jornal Boston Globe na região do Putumayo (abrangida pelo Plano Colômbia e onde se implantou um importante reduto rebelde), o jornalista Karl Penahaul observou que uma sentinela paramilitar “fuçava num pacote de víveres ‘C’ do exército norte-americano, procurando chiclete e pastéis. Ignorava as perguntas que lhe eram feitas sobre a origem dos mantimentos, enviados para as três brigadas antinarcóticos do exército colombiano, treinadas por assessores das forças especiais dos Estados Unidos” e que estavam acampadas próximo ao local da entrevista.
Uribe: paramilitarização total
Com o sumiço ou a detenção dos chefes dos cartéis de droga de Medellín e Cali, os paramilitares assumiram o controle do processamento e exportação da droga
Eleito em agosto de 2002 com 53% dos votos (e 52% de abstenções), Alvaro Uribe Vélez assumiu a presidência do país. Latifundiário, foi o mais importante adepto das Convivir, principalmente no departamento16 onde foi governador, Antioquia. “É o homem mais próximo à nossa filosofia17”, disse o chefe das AUC sobre ele. Os meios de comunicação colombianos e estrangeiros mencionaram, por diversas vezes, seus vínculos com o cartel de Medellín e os grupos paramilitares.
Misteriosamente, ninguém pareceu se preocupar com esses vínculos e até houve elogios à sua decisão de desencadear uma guerra total contra as organizações guerrilheiras. Como diz o pesquisador e militante de direitos humanos, Diego Pérez Guzmán, o objetivo do presidente é “recuperar a confiança dos investidores estrangeiros. Pouco importa o preço a ser pago pela população civil não-combatente. Seu objetivo prioritário – embora não o manifeste de forma tão crua – é a paramilitarização total do Estado e da sociedade”. No âmbito da política de “segurança democrática” do presidente Uribe, um milhão de colombianos deveriam ser contratados como informantes (nos mesmos moldes do princípio das Convivir); 25 mil camponeses e indígenas receberiam instrução militar antes de voltarem às suas comunidades, onde se tornariam “milicianos camponeses” – o que lembra as Patrulhas de Autodefesa Civil (PAC) da Guatemala, de triste memória; também seriam criadas frentes de segurança nos bairros e nos estabelecimentos comerciais.
Guerra integral contra rebeldes
Além disso, existe um projeto no sentido de vincular as empresas de transporte e os taxistas à segurança das cidades e das rodovias, ao mesmo tempo em que as agências de segurança privadas ficariam obrigadas a prestar as informações e os serviços exigidos pelas forças armadas. Nenhum cidadão poderá declarar-se neutro, sob pena de ser apontado como colaborador dos rebeldes. As poucas instituições que o Estado ainda não envolvera na estratégia de contra-insurreição foram, agora, convocadas a participar da “guerra integral”, inclusive o Ministério Público. Quinze de seus funcionários – que realizavam investigações sobre os chefes paramilitares e oficiais do alto comando das forças armadas, implicados em graves casos de violação de direitos humanos – foram afastados no período de um ano. Por outro lado, foram criadas duas Zonas de Reabilitação e Consolidação, por enquanto não submetidas à legislação constitucional, nos departamentos de Sucre, Bolívar e Arauca. Ali, o poder militar atua de forma direta, substituindo o governo local.
O Plano Colômbia, apoiado por Washington, diz ter por objetivo a erradicação do tráfico de drogas, mas nenhuma medida foi tomada contra os paramilitares
Enquanto as negociações com as Farc e o ELN continuam em ponto morto, o governo Uribe recebe os paramilitares de braços abertos. Num comunicado divulgado em novembro do ano passado, estes declaram: “Não podemos permanecer alheios ao reiterado apelo ao diálogo e à reconciliação que nos fez o governo nacional, por meios variados…” Com o beneplácito de Washington – e após um mês de reuniões preparatórias envolvendo o Alto Comissário para a Paz, Luis Carlos Restrepo, cinco bispos e os chefes paramilitares – foram anunciadas negociações no dia 27 de novembro e entrou em vigor um cessar-fogo no dia 1º de dezembro de 2002. Nem os contra nicaragüenses foram tratados com tanta deferência. A partir dessa data, o governo criou uma “comissão preliminar” e o cessar-fogo foi cumprido com tanto respeito, que as cinco divisões do exército jamais enfrentaram, em nenhum momento, a chamada “sexta divisão” dos paramilitares18.
Integração conveniente
Na realidade, um percurso lógico levou à atribuição de um novo papel a esse movimento. Devido a suas implicações no narcotráfico e às múltiplas denúncias internacionais de que foi objeto – assim como o novo cenário do pós-11 de setembro de 2001, inteiramente montado contra o “terrorismo” – a presença visível dos paramilitares representa atualmente mais uma vantagem do que um inconveniente. As negociações e um acordo (assim como uma eventual anistia) deveriam permitir que fossem discretamente reintegrados ao aparelho legal do Estado (como informantes, milicianos camponeses etc.), onde, sigilosamente, continuariam o trabalho que vêm fazendo.
Enquanto as negociações com as Farc e o ELN continuam em ponto morto, o governo Uribe recebe os paramilitares de braços abertos.
De momento, nada permite que seja concedido um status político aos paramilitares. De acordo com os conceitos internacionais e os da própria Constituição colombiana, esse status só pode ser atribuído a indivíduos que lutem contra um Estado que oprime a população social, econômica e politicamente – contexto no qual se inserem os movimentos guerrilheiros. Os paramilitares dizem fazer parte integrante de uma estratégia contra-insurrecional e lutar (como “organização paralela”, nas palavras de seus chefes) pela defesa das instituições do Estado.
Legitimação das atrocidades
Ao deixar seus crimes impunes, o Estado colombiano não só foge ao “dever de procurar e punir, mas também sinaliza erradamente aos que cometeram atrocidades; além de perdoá-los, legitima-os como atores políticos19”. No entanto, o governo do presidente Uribe Vélez mantém suas decisões, para o que conta com o apoio das forças armadas, de poderosos grupos econômicos e dos meios de comunicação que, aliás, o elegeram “Homem do Ano 2002”.
Ainda tem, principalmente, o apoio do governo de George W. Bush, que permitiu que os recursos enviados para o combate ao tráfico de drogas sejam empregados, no contexto do Plano Colômbia, na luta contra a guerrilha. Na realidade, esse repasse já vinha ocorrendo de facto, contrariando as disposições do Congresso norte-americano. Pelo menos 70 membros das forças especiais norte-americanas já chegaram a Arauca, principal região petrolífera do país, próxima à fronteira com a Venezuela, para dar treinamento a uma brigada do exército.
“O senhor desenvolveu uma grande estratégia para combater o fenômeno da insegurança e do terrorismo”, foi a declaração de Colin Powell ao presidente Uribe Vélez durante sua visita, em dezembro passado. Aparentemente, o responsável pelo Departamento de Estado norte-americano não sabe que, nessa “grande estratégia”, o movimento paramilitar teve um papel decisivo. E finge ignorar que, considerada como uma base de apoio real ou imaginária dos rebeldes, é a população não-armada que, uma vez mais, pagará o preço da repressão.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Ler , publicado por várias organizações internacionais de direitos humanos, ed. NCOS, Bruxelas, 1992. O relatório contém os dados de 350 dirigentes das forças armadas e da polícia envolvidos na “guerra suja” que jamais foram punidos. Essas informações nunca foram desmentidas.
2 – El Terrorismo de Estado en Colombia, op. cit.
3 – Ler La guerra moderna, publicação do Exército da Colômbia, Biblioteca do Exército, Bogotá, 1963.
4 – Citado no livro Tras los pasos perdidos de la Guerra Sucia, publicado por várias entidades internacionais de direitos humanos, ed. NCOS, Bruxelas, 1995.
5 – Reglamento de Combate de Contraguerrilla, EJC-3, confidencial, Bogotá, 1969.
6 – Citado em Tras los pasos perdidos de la Guerra Sucia, op. cit.
7 – Colombia’s Killer Networks, Human Rights Watch, Washington, 1996.
8 – Ler, de Federico Andreu Guzmán, Colombia ante los retos del siglo XXI: Desarrollo, Democracia y Paz, ed. Universidade de Salamanca, 2001.
9 – El Espectador, 24 de janeiro de 1999.
10 – A Defensoria Pública é uma instituição do Estado encarregada de fiscalizar o respeito pelos direitos humanos e defender os cidadãos. O defensor é eleito pela Câmara dos Representantes.
11 – 4º Informe Anual do Defensor Público perante o Congresso colombiano, Documento nº II, Bogotá, 1999.
12 – Le Monde, Paris, 18 de maio de 2001.
13 – Ler, de Mauricio Aranguren Molina, Mi confesión. Carlos Castaño revela sus secretos, ed. Oveja Negra, Bogotá, 2001.
14 – Ler, do senador Gustavo Petro, Indulto a paramilitares, ed. Via Alterna, 14 de dezembro de 2002.
15 – No entanto, em setembro de 2001 os Estados Unidos acusaram diversos paramilitares de narcotráfico e chegaram a pedir a extradição de vários de seus chefes, entre os quais Salvatore Mancuso e Carlos Castaño.
16 – N.T.: O equivalente a província.
17 – Mi confesión. Carlos Castaño revela sus secretos, op. cit.
18 – Ler The “Sixth Division”, Military-paramilitary Ties and U.S. Policy in Colombia, ed. Human Rights Watch, Nova York, novembro de 2001.
19 – Declaração do Departamento de Direitos Humanos da ONU, El Espectador, Bogotá, 24 de janeiro de 1999.