Governos das Américas devem participar de uma votação crucial que pode decidir o futuro de um órgão que tem sido vital na proteção dos direitos humanos na região por mais de 60 anos.

Desde 1959, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) orienta os países no estabelecimento de normas legais e na assistência a milhões de vítimas da violência e da desigualdade.

É responsável por investigar violações de direitos humanos – incluindo julgamentos injustos, execuções extrajudiciais e violência contra mulheres e populações vulneráveis ​​– e submeter casos à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, fundada em 1979). Ambos os órgãos compõem o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH).

Agora, os defensores dos direitos temem que o futuro da comissão esteja ameaçado em meio à votação para eleger quatro de seus sete membros nesta semana. Eles temem que a eleição de dois candidatos que defendem pontos de vista radicais antiaborto e uma compreensão conservadora do direito internacional possa minar os padrões estabelecidos pelo órgão.

A votação acontecerá na sexta-feira na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, DC, quando 35 países membros se reunirão para a Assembléia Geral de três dias deste ano.

Os países da OEA haviam indicado dez candidatos para preencher quatro cargos vagos até 2027, mas em um movimento inédito, quatro retiraram suas candidaturas.

Agora, um painel independente afirmou que três dos seis candidatos restantes não atendem aos padrões esperados pela Convenção Americana de Direitos Humanos, que incluem independência, imparcialidade, alta autoridade moral e experiência e conhecimento dos direitos humanos. A advertência partiu de um grupo de especialistas que desde 2015 avalia candidatos a autoridades nos órgãos do SIDH (e faz recomendações não vinculantes aos países da OEA).

O painel foi criado em resposta aos apelos de grupos de campanha para fortalecer a transparência e a participação nos processos de nomeação e eleição de autoridades interamericanas. Embora seu parecer não seja vinculativo, desde a sua criação o painel forneceu orientação a ambos os países e à OEA para assegurar a qualidade e relevância do funcionamento dos órgãos de direitos humanos, o desenvolvimento adequado dos padrões interamericanos de direitos humanos e a proteção efetiva de pessoas que sofreram violações de direitos humanos e não receberam uma resposta oportuna e eficaz nos tribunais internos de seus países.

Defensores dos direitos e movimentos da sociedade civil em todo o continente expressaram preocupação com o possível resultado das eleições.

Mas como os critérios da Convenção não são obrigatórios, um membro do painel – a socióloga mexicana e especialista em direitos Mariclaire Acosta – disse ao openDemocracy que acreditava que as decisões dos governos sobre quem apresentar tendiam a ser amplamente baseadas no alinhamento com suas próprias políticas.

Gloria Monique de Mees, do Suriname, Pier Pigozzi (Equador) e Stuardo Ralón (Guatemala, que já é comissário e busca a reeleição), foram considerados abaixo dos padrões exigidos.

Depois de entrevistar e avaliar os candidatos, o painel opinou que – embora De Mees tenha experiência como acadêmica em vários campos relacionados ao direito dos tratados, diplomacia e direitos humanos – ela carece de competência em normas interamericanas e internacionais de direitos humanos. Como De Mees fez parte da agência que representa o estado do Suriname perante o IAHRS, o painel também levantou preocupações sobre sua imparcialidade e “possíveis conflitos de interesse”.

Enquanto isso, o painel disse que as candidaturas de Pigozzi e Ralón seriam uma “regressão” em direitos duramente conquistados, citando proteções para povos indígenas, comunidade LGBTIQ+, direitos sexuais e reprodutivos, igualdade no casamento e liberdade de expressão.

Os outros três candidatos – Andrea Pochak (Argentina), Christopher Bulkan (Guiana) e Lidia Casas (Chile) – atendem aos critérios de elegibilidade, de acordo com o painel.

Defensores dos direitos e movimentos da sociedade civil em todo o continente expressaram preocupação com o possível resultado das eleições.

“O problema não é que diversos indivíduos ingressem na CIDH, porque a diversidade dá um sentido de realidade ao que está acontecendo [in the Americas]. A questão é se os indivíduos nomeados têm capacidade de sobriedade e imparcialidade ao tomar decisões coletivas com foco no objetivo final da CIDH”, disse Gina Romero, diretora executiva da Rede Latino-Americana e Caribenha pela Democracia, ao openDemocracy.

A Campanha GQUAL, que reúne a sociedade civil, acadêmicos e ex-membros de vários tribunais internacionais, está instando os Estados da OEA a votar de maneira que atenda aos critérios de elegibilidade e mantenha a paridade de gênero existente na comissão.

Para muitos defensores de direitos humanos, as candidaturas de Ralón e Pigozzi são particularmente preocupantes.

Se prevalecer uma interpretação ultraconservadora da lei, a comissão pode deixar de aplicar ou levar em consideração as normas do SIDH

O painel também expressou preocupação sobre sua compreensão do papel do SIDH, já que sua interpretação poderia “isentar [countries] de responsabilidade em casos de violações de direitos humanos que se concretizem por meio de decisões judiciais”.

Ralón, que está na comissão desde 2020, emitiu um voto contrário em alguns casos cruciais, incluindo os direitos dos transgêneros e pessoas com diversidade de gênero e no histórico Beatriz x El Salvador. Este último caso, interposto por grupos feministas e ONGs sobre a morte de uma mulher em El Salvador a quem foi negado o aborto apesar de sua gravidez de alto risco, foi o primeiro relacionado com a proibição total do aborto na Corte Interamericana. A decisão pode abrir um precedente na América Latina e no Caribe na proteção dos direitos reprodutivos na região.

Quanto a Pigozzi, o painel considerou que suas posições “denotam retrocesso em relação aos padrões internacionais consolidados de proteção dos direitos humanos”. Os membros do painel mencionaram especificamente sua posição sobre a igualdade no casamento e o direito dos casais do mesmo sexo de adotar crianças, bem como os direitos sexuais e reprodutivos – no ano passado, Pigozzi disse que o direito ao aborto é inexistente.

Os ativistas temem que, se os dois homens forem eleitos, a CIDH possa eventualmente se tornar tendenciosa para os conservadores, com o professor de direito colombiano de direita Carlos Bernal Pulido já deve servir como comissário até 2025, quando haverá outro turno de eleições.

Entre outras manifestações de desacordo com as ações da CIDH, Bernal Pulido emitiu votos contrários a declarações de comissões para promover o reconhecimento e a proteção dos direitos reprodutivos nas Américas, a fim de defender a “vida desde a concepção”, que foi apoiada por Ralón Orellana. o comissário também expressou sua oposição para a CIDH mensagem de apoio ao México em 2022, quando o país fez o reconhecimento constitucional do direito de receber assistência médica para o aborto em casos de estupro, bem como a descriminalização do aborto até a 12ª semana no estado mexicano de Guerrero.

Se prevalecer uma interpretação ultraconservadora da lei, a comissão pode deixar de aplicar ou não levar em consideração os padrões do SIDH, acreditam os defensores de direitos. Algo semelhante aconteceu nos Estados Unidos nos últimos anos, onde uma ‘supermaioria’ conservadora na Suprema Corte conseguiu reverter decisões constitucionais que durante décadas garantiram os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

“Se por algum motivo os países optarem por essas candidaturas, estaremos essencialmente perdendo a CIDH”, disse a advogada de direitos humanos Marcia Aguiluz, diretora jurídica da Women’s Link Worldwide para a América Latina. “Estaríamos realmente nos afastando do que a CIDH tem sido historicamente: um órgão que tem contribuído para a evolução e o reconhecimento dos direitos humanos.”

Para a advogada venezuelana Fanny Gómez-Lugo, diretora do Centro de Igualdade das Mulheres, que luta pela liberdade reprodutiva, eleger Ralón e Pigozzi “quebraria o princípio da igualdade e não discriminação”, fundamento dos direitos humanos, e significaria que existem “ cidadãos de primeira classe e cidadãos de segunda classe”.

O painel do SIDH também ficou alarmado com o fato de que, pela primeira vez na história da eleição de membros da comissão, três estados (Brasil, Honduras e Peru) retiraram suas indicações sem oferecer uma explicação pública.

Gómez-Lugo disse que tal resultado “desacreditaria” e “minimizaria” o mandato e o alcance da comissão, que nos últimos anos desempenhou um papel de apoio à democracia durante crises políticas em vários países latino-americanos.

O Washington Office on Latin America, uma organização de defesa dos direitos humanos nas Américas, também está preocupado que a comissão possa ser enfraquecida por candidatos que buscam questionar a lei internacional de direitos humanos.

O painel do SIDH também ficou alarmado com o fato de que, pela primeira vez na história da eleição de membros da comissão, três estados (Brasil, Honduras e Peru) retiraram suas indicações sem oferecer uma explicação pública. Isso teve um “impacto na transparência do processo”, disse o painel. Os EUA também retiraram seu candidato, mas explicaram que “perderam a confiança em [their] viabilidade” para o papel.

“Como os países nomeiam indivíduos arbitrariamente, por assim dizer, realmente não sabemos com base em que premissas algumas pessoas são nomeadas”, disse Aguiluz do Women’s Link Worldwide. Para evitar indicações inadequadas no futuro, o painel do SIDH sugeriu que os Estados da OEA estabeleçam mecanismos participativos e transparentes para a seleção de candidatos.

Fonte: https://www.truthdig.com/articles/conservatives-could-take-over-inter-american-commission-on-human-rights/

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