O ex-presidente Jair Bolsonaro tem passado por uma fase difícil. Depois de passar três meses na Flórida, voltou ao Brasil no final de março para encontrar um cenário institucional menos amistoso do que o cultivado ao longo de sua gestão. Nas últimas semanas, os esforços de Bolsonaro para liderar a oposição ao atual governo foram ofuscados pela imagem do ex-presidente chorando em uma entrevista em 3 de maio ao relatar uma busca policial realizada em sua casa. A busca estava ligada à suposta falsificação de seu cartão de vacinação contra a Covid-19 para evitar restrições de viagens. Ele nega participação no esquema.

As falsas acusações de vacina surgiram depois que Bolsonaro foi chamado em abril para testemunhar em resposta a alegações em duas investigações separadas. A primeira diz respeito às acusações de que ele tentou trazer ilegalmente para o Brasil mais de US$ 3 milhões em joias que recebeu do governo da Arábia Saudita; a segunda diz respeito à sua suposta participação nos ataques de 8 de janeiro à Praça dos Três Poderes, em Brasília. Várias outras investigações pairam sobre Bolsonaro, seus associados próximos e seus filhos, que também são políticos de carreira.

Grande parte da ideologia de extrema direita que se insinuou na sociedade brasileira nos últimos anos permanece muito viva graças à milícia digital de influenciadores, blogueiros, fontes de notícias “alternativas” e políticos que floresceram sob Bolsonaro.

Os desafios legais enfrentados por Bolsonaro podem parecer um sinal de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está avançando em seu objetivo de restaurar a democracia no Brasil. De fato, ao longo de seus quatro anos de governo, o ex-presidente foi além de atacar o sistema eleitoral. Ele também minou as instituições para levar a cabo seu projeto autoritário neoliberal, cortando o financiamento de vários programas e agências do governo, enfraquecendo o Ministério Público Federal e interferindo na Polícia Federal, entre outras ações. O conjunto de investigações envolvendo Bolsonaro indica que o rumo anterior está sendo revertido, mas a verdade é que a direita no Brasil não está de forma alguma mais fraca. Quatro anos de Bolsonaro reconfiguraram as forças conservadoras de maneiras extremamente difíceis de interromper e que mantiveram vivo seu projeto reacionário.

Enquanto o governo Lula formula uma nova política econômica para orientar os gastos públicos nos próximos anos em investimentos e programas sociais, os debates ainda são enquadrados pelos princípios da “responsabilidade fiscal”, um disfarce para a austeridade e outras práticas antidemocráticas de gastos. Ao mesmo tempo, o fundamentalismo religioso e sua propaganda não retrocederam e continuam a apresentar “a família tradicional” como modelo a ser seguido, enquanto vilipendiam e tentam criminalizar modos de vida que desafiam as normas heteropatriarcais. Bolsonaro e o bolsonarismo promoveram o desrespeito ao Estado de Direito, estimularam a proliferação de armas e ampliaram valores individualistas e masculinistas. Não é de surpreender que a violência bruta tenha se tornado o meio pelo qual muitos buscam abertamente enfrentar conflitos, como demonstrado pelo aumento das taxas de homicídio na região amazônica e pelo aumento de tiroteios em massa em escolas, um fenômeno relativamente novo no Brasil. Em outras palavras, os riscos de combater o autoritarismo permanecem altos.

Enquanto Bolsonaro perdeu a eleição de outubro passado por uma margem estreita, a maioria dos legisladores de direita conquistou assentos no Congresso do Brasil. Isso pressionou o novo governo Lula a incorporar alguns dos antigos aliados de Bolsonaro ao governo. A decisão mais controversa foi dar cargos ministeriais a três membros do partido de direita União Brasil – uma ramificação do Partido Social Liberal (PSL), partido de extrema-direita com o qual Bolsonaro conquistou a presidência em 2018, mas posteriormente abandonado – embora a União Brasil estivesse dividida quanto ao apoio ao novo governo. O compromisso garantiu objetivos cruciais na transição de poder, como negociar um pacote de gastos para recuperar alguns dos programas sociais defendidos nos governos anteriores do Partido dos Trabalhadores (PT), mas não foi suficiente para consolidar uma margem estável no Congresso para aprovar legislação

Lula também enfrentou o desafio de garantir apoio no Congresso porque os legisladores foram encorajados durante os anos de Bolsonaro pelo chamado “orçamento secreto”, um caixa dois com muito pouca supervisão que delegou o âmago da questão dos gastos federais aos membros da Câmara e o Senado. O presidente da Câmara, Arthur Lira, que trabalhou de perto com Bolsonaro e está à frente da Câmara desde 2021, admitiu que os legisladores buscam o controle sobre como o dinheiro é alocado e não se esquivou de pressionar o governo a agir mais rápido para facilitar seu acesso aos fundos. Desnecessário dizer que ceder a tal pressão prejudicará uma agenda progressista, já que o “orçamento secreto” incentiva a distribuição de recursos de acordo com os interesses dos políticos e não com as necessidades das pessoas. Mesmo assim, diante dos reveses legislativos, Lula cedeu aos desejos dos legisladores, na esperança de atenuar sua resistência e angariar apoio para os objetivos centrais de seu governo, como a expansão de programas sociais e investimentos em projetos de infraestrutura.

Quatro anos de Bolsonaro reconfiguraram as forças conservadoras de maneiras extremamente difíceis de interromper e que mantiveram vivo seu projeto reacionário.

A influência dos legisladores ficou evidente mais uma vez quando o governo cedeu à criação, em abril, de uma comissão conjunta da Câmara e do Senado para investigar os eventos de 8 de janeiro. judicial. O objetivo dos direitistas ao propor e eventualmente instalar tal comitê foi mudar a narrativa sobre 8 de janeiro, suavizando ou direcionando mal as acusações que envolvem Bolsonaro e seus apoiadores. Em outras palavras, o objetivo é culpar o Partido dos Trabalhadores pela destruição da Praça dos Três Poderes, argumentando que a multidão era pacífica em geral e que o novo governo foi negligente, não antecipando e depois agindo efetivamente contra os insurgentes.

Enquanto Lula e seus associados próximos inicialmente desafiaram a formação de um comitê apoiado pela oposição, eles agora estão negociando para que membros do Partido dos Trabalhadores e (reais) aliados em posições-chave do Comitê 8 de Janeiro antecipem essa reação conservadora.

Enquanto isso, um segundo comitê mirou no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o antigo movimento social que luta pela reforma agrária no Brasil. O comitê é liderado por algumas das vozes mais estridentes do bolsonarismo, incluindo o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, sob cuja supervisão as emissões e o desmatamento da Amazônia se expandiram maciçamente. Salles foi flagrado incentivando o enfraquecimento da regulamentação ambiental.

O Comitê do MST não tem base substancial. A direita avançou na investigação sobre as atividades do MST para atacar o Partido dos Trabalhadores por meio de táticas de “medo vermelho” ou de espalhar o medo em torno de posições esquerdistas reforçadas por uma série de teorias da conspiração que foram disseminadas ao longo da última década. Esse Comitê tem como objetivo dar continuidade à batalha ideológica que caracterizou os anos Bolsonaro, mantendo em destaque uma visão conservadora do Brasil, minando alternativas equitativas e criminalizando os movimentos sociais. Na mesma linha, o Congresso está agora promovendo um projeto de lei controverso que reduziria o reconhecimento de terras indígenas, aumentando o medo de novos ataques às comunidades indígenas.

Grande parte da ideologia de extrema direita que se insinuou na sociedade brasileira nos últimos anos permanece muito viva graças à milícia digital de influenciadores, blogueiros, fontes de notícias “alternativas” e políticos que floresceram sob Bolsonaro e continuam a preencher várias plataformas . A regulamentação da desinformação na internet está prevista desde as eleições de 2018, tornando-se ainda mais urgente com os ataques de 8 de janeiro. Mas o controle da desinformação e do discurso de ódio agora enfrenta um desafio adicional, já que empresas como Google e Telegram efetivamente se aliaram aos interesses conservadores ao fazer campanha ousada contra os regulamentos propostos. O autoritarismo sofreu um revés com a vitória de Lula, mas ainda não desmoronou e deu lugar a um novo consenso em torno das regras básicas do jogo democrático.

Independentemente do destino de Bolsonaro, a conclusão é inconfundível: o fim do autoritarismo e o renascimento da democracia no Brasil ainda estão distantes no horizonte.

Certamente, a nova administração não foi passiva. Lula tem criticado constantemente o Banco Central do Brasil, cujo atual presidente foi indicado por Bolsonaro, por manter as taxas de juros exorbitantes que restringem o investimento e a geração de empregos. Lula restabeleceu os canais que dão voz aos membros da sociedade civil na formulação de políticas e, em seu primeiro dia no cargo, revogou a ordem executiva de Bolsonaro que ampliava o acesso a armas de fogo. As investigações sobre os ataques de 8 de janeiro também desempenham um papel importante no combate ao autoritarismo, pois abordam vários aspectos da insurreição – desde o rastreamento de quem participou até os mecanismos de financiamento.

Resta, no entanto, dar conta integralmente do estado da direita na era pós-Bolsonaro. O poderoso bloco de extrema direita no Congresso não está sozinho, mas auxiliado por uma ampla gama de grupos semi-autônomos galvanizando seguidores, criando narrativas e, às vezes, abrindo novos caminhos. A base desse movimento cabeça-de-hidra não é bem definida: é uma combinação de fanáticos com simpatizantes mais ou menos soltos que consomem e amplificam, em graus diversos, um projeto neoliberal autoritário para o Brasil.

Nesse cenário, o papel de Bolsonaro permanece incerto. Os desafios judiciais que ele enfrenta atualmente podem diminuir sua personalidade pública ou recentrá-lo no cenário nacional. Por um lado, o retorno de Bolsonaro ao Brasil gerou alarde menor do que o esperado, e as alegações de que acusações criminais podem torná-lo inelegível para a corrida presidencial de 2026 podem resultar em seu isolamento. Por outro lado, nenhuma outra figura de direita no país igualou (ainda) o poder unificador que Bolsonaro exerceu. As acusações iminentes poderiam, portanto, encorajá-lo e levar as facções de direita a se realinharem em torno dele. Independentemente do destino de Bolsonaro, a conclusão é inconfundível: o fim do autoritarismo e o renascimento da democracia no Brasil ainda estão distantes no horizonte.

Fonte: https://www.truthdig.com/articles/lula-won-but-bolsonarismo-still-looms-large/

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