Não se pode falar do governo de Dina Boluarte no Peru e dos mais de sessenta assassinatos cometidos por policiais em protestos sem mencionar o atual primeiro-ministro Alberto Otárola. O caráter autoritário do atual governo deve-se, em grande parte, à influência de Otárola “o Açougueiro”, como agora às vezes é conhecido.

A rápida ascensão de Otárola começou em 7 de dezembro, quando o presidente Pedro Castillo, diante de mais uma tentativa de impeachment do Congresso, tentou, sem sucesso, dissolver a instituição. As forças armadas e a polícia não o apoiaram e, uma vez aprovado o impeachment, o vice-presidente Boluarte assumiu a presidência naquele mesmo dia. Em vez de se distanciar da oposição de Castillo, a nova presidente se aproximaria dos elementos de direita e ultradireita do governo.

Otárola fez parte do primeiro gabinete de ministros do governo Boluarte, assumindo o cargo de ministro da Defesa. Como comandante das Forças Armadas do Peru, Otárola foi o responsável direto pelo massacre de Ayacucho perpetrado por militares em 15 de dezembro, no qual dez pessoas foram baleadas e mortas. Apesar das claras violações de direitos humanos, Otárola, longe de levantar dúvidas em Boluarte, aproximou-se do presidente. O cinismo com que Otárola justificava os abusos das forças armadas somava-se à total relutância de Boluarte em reconhecer tais abusos, lançando dúvidas sobre sua capacidade de liderar como presidente.

A partir daí, em todas as coletivas de imprensa, Otárola podia ser visto ao lado de Boluarte, reflexo de como começou a relação dos dois. Em 2022, como vice-presidente e ministro, Boluarte contratou Otárola como sua advogada para se defender das acusações de administrar empresa privada enquanto ocupava cargo público. Para Boluarte, Otárola continua a ocupar esse papel de escudeiro.

Mas talvez mais surpreendente seja o fato de Otárola ter participado de movimentos políticos de esquerda e ter usado sua experiência para defender os direitos humanos – os mesmos direitos agora sendo esmagados sob seu comando. Otárola tornou-se ministro da Defesa no governo do ex-presidente Ollanta Humala entre 2011 e 2012, e permaneceu ativo no Partido Nacionalista Peruano de Humala até 2021. Em 2020, na campanha eleitoral, Otárola apoiou e defendeu uma das bandeiras da esquerda peruana. : a redação de uma nova constituição por uma assembléia constituinte. Agora, porém, ele rejeita a ideia de um processo constituinte, atualmente uma das principais reivindicações dos manifestantes.

Esse é outro ponto fundamental que explica a estreita relação de Otárola com Boluarte. Ambos têm demonstrado compromissos políticos voláteis e imprevisíveis que adaptam em função de seu próprio benefício e sobrevivência política. Abandonaram as propostas de reformas sociais para abraçar as iniciativas das elites econômicas. Eles se distanciaram das organizações progressistas para se aproximar das forças políticas da ultradireita. Tendo feito essa transição juntos, Boluarte e Otárola estreitaram o vínculo.

Não surpreende, portanto, que, em 21 de dezembro do ano passado, Boluarte nomeasse Otárola, a grande responsável por um dos maiores assassinatos dos últimos anos, chefe de seu gabinete de ministros. Com esta nomeação, ela confirmou que a violenta repressão do governo aos protestos não diminuiria, mas aumentaria de intensidade.

E, infelizmente, foi exatamente isso que ocorreu. Em 9 de janeiro, em Juliaca, na região de Puno, o atual governo realizou seu segundo maior massacre. Vinte perderam a vida após serem atingidos por balas e outros projéteis. Entre os mortos figuravam pessoas que nem participavam dos protestos.

Nesse mesmo dia, Otárola fez seu primeiro discurso à nação sem a presença do presidente Boluarte. Divergindo das mentiras anteriores sobre o movimento de protesto, Otárola não falou de grupos violentos realizando protestos, mas culpou o ex-presidente Pedro Castillo por estar por trás deles. Sem expressar culpa ou remorso pelos assassinados naquele dia, Otárola afirmou que o governo continuará respondendo aos protestos com a mesma determinação. Percebendo a insensibilidade com que Otárola assimilou o assassinato de inocentes, observadores envolvidos nos protestos e nas redes sociais passaram a se referir a Otárola como “o Açougueiro”.

Na repressão aos protestos e ao movimento de oposição, o gabinete dirigido por Otárola incorporou três componentes clássicos dos regimes cívico-militares: a fabricação de um inimigo do qual a população deve ser protegida, a repressão física violenta durante os protestos e a perseguição e criminalização de cidadãos que se opõem ao regime.

As explicações do governo sobre as origens dos protestos foram inconsistentes, mudando em pelo menos cinco ocasiões. Boluarte e Otárola começaram falando de grupos de criminosos organizando os protestos para saquear. Então Otárola acusou Castillo de ter organizado tudo. Dias depois, o governo falava no ressurgimento do Sendero Luminoso, grupo terrorista que realizou atentados nos anos 80. As autoridades também apontaram a interferência estrangeira e, com base em uma publicação infundada de um congressista boliviano, disseram que grupos próximos ao ex-presidente boliviano Evo Morales estavam fornecendo armas e organizando as marchas. Por fim, acusaram as mineradoras ilegais de financiar tudo. O governo não pôde fornecer evidências para nenhuma de suas hipóteses.

Por outro lado, a violenta repressão aos protestos foi bem documentada em centenas de vídeos. A polícia usou gás lacrimogêneo em manifestantes pacíficos, espancou impiedosamente indivíduos que encontraram já incapacitados e atirou em pessoas desarmadas que não representavam nenhuma ameaça. Além disso, agrediram fisicamente jornalistas e médicos de rua. Embora a grande mídia no início tentasse esconder os assassinatos injustificados das autoridades, as evidências eram esmagadoras. As investigações da mídia nacional e internacional já demonstraram a repressão brutal de protestos ao lado de execuções extrajudiciais das autoridades.

Além da repressão bruta aos protestos, o governo também perseguiu e criminalizou os participantes. Centenas foram detidos arbitrariamente sem provas, mantidos em celas por vários dias. Essas prisões geralmente ocorrem fora dos protestos, sempre justificadas sob a rubrica de “inteligência contra atores violentos”, mas geralmente sem nenhuma evidência que sustente as alegações de violência. Alguns dos detidos denunciaram práticas de tortura e até violência sexual, tendo sido obrigados a despir-se para revistas em situações que não mereciam tais medidas. Além disso, imagens de cidadãos mostraram a polícia plantando evidências para justificar prisões e detenções de participantes do protesto. No cúmulo do absurdo, detiveram e encarceraram pessoas alegando que financiaram atos subversivos por porte de quantias em dinheiro inferiores a US$ 500.

A situação no Peru é grave. Ainda que os argumentos do governo Boluarte para justificar suas ações sejam cada vez mais absurdos, a cada dia Otárola, o “Açougueiro”, parece ter mais poder, patente nas ações cada vez mais autoritárias do atual governo. O vínculo entre Boluarte e Otarola agora parece baseado no medo que eles compartilham de que, uma vez fora do poder, terão que enfrentar a justiça pela violação sistêmica dos direitos humanos por parte de seu governo.

Essa administração encontra cada vez menos apoio. A grande imprensa não consegue diminuir seus crimes e abusos, e alguns setores da direita chegaram a considerar insustentável a presidência de Boluarte.

As Nações Unidas enviaram uma carta ao governo em 2 de março, dando ao poder executivo sessenta dias para investigar e responder ao uso excessivo da força pelas autoridades e às mortes de manifestantes. E o procurador-geral do Peru abriu uma investigação preliminar contra Boluarte e Otárola pelo crime de genocídio, pelo qual ambos foram interrogados. Por sua vez, o governo dos Estados Unidos, por meio de seu subsecretário de Estado para assuntos do Hemisfério Ocidental, expressou seu desejo de que o Peru avance as eleições.

Enquanto isso, a maioria dos peruanos, como claramente expressou nas ruas e nas pesquisas, deseja a renúncia imediata de Dina Boluarte – e com ela, a queda e julgamento do infame primeiro ministro Alberto “o Açougueiro” Otárola.

Source: https://jacobin.com/2023/04/peru-protest-repression-alberto-otarola-dina-boluarte

Deixe uma resposta